“Vaidade de vaidades – diz o sábio – vaidade de vaidades. Tudo é vaidade.” – Eclesiastes 1:2
Há uma vaidade que nasce connosco, e as redes sociais (onde soltamos o exibicionismo embelezado do que vemos, ouvimos, comemos e pensamos) são um veículo disso. Mas as redes sociais têm-se provado igualmente veículo para outra característica, também ela intrínseca, também ela vaidosa e movida pelo ego, que é o policiamento (e consequente condenação) dos outros. Já não basta parecermos bem, é necessário que o nosso bem se eleve às cavalitas do mal dos outros. E, neste contexto, também é muito mais fácil policiar e odiar aqueles com quem temos proximidade cultural – reconhecemos nos outros os nossos próprios defeitos mas, sobretudo, os privilégios. Somos tão complexados com os privilégios da nossa liberdade que, em compensação, apontamos tiranias nos que gozam da mesma liberdade que nós. É fácil odiar os privilégios que conhecemos de ginjeira.
De alguma forma, assim se explica que o Facebook ontem tenha sido invadido por gente indignada com a falta de indignação. “Tudo a falar de uma dúzia de mortos na América e ninguém fala da quase centena de mortos na Síria. Vergonha!”; “Ai agora para os lados da Síria já não há #thoughtsandprayers, são pessoas de 2ª categoria?!”. Esta é uma pequena amostra do que li nas últimas 24 horas. Embora me sinta injustiçado (porque tinha planeado escrever hoje sobre a Síria), e embora aponte a vaidade farisaica neste policiamento facebookiano, volto a reconhecer que existe mesmo parcialidade na geopolítica da nossa consternação.
Como já disse, é bem provável que isto seja um defeito, mas estou longe de nos recriminar. Acho natural colocarmo-nos com maior facilidade no lugar daqueles que têm um quotidiano mais parecido com o nosso; natural que nos ponhamos nos pés dos que calçam as mesmas marcas de sapatos que nós. Pessoas ensanguentadas são sempre uma imagem tenebrosa, mas podem ser mais do que isso - basta que o cenário em volta dos corpos nos pareça familiar. Nas vítimas desconhecidas projectamos possibilidades conhecidas, a imagem dos nossos vizinhos, amigos, parentes, filhos. O medo fica mais próximo, fica passível de chegar-nos ao quintal – assim, quem é que consegue controlar-se na parcialidade da reacção?
Dado que a estrutura social e política norte-americana nos é inteligível (quer pelas semelhanças democráticas, quer pela aculturação mediática), na reacção a este último tiroteio escolar debitámos mais do que palavras de consternação. Por cá, nas redes sociais escreveu-se bastante sobre o massacre na Florida, mas não só para chorá-lo. Muitas foram as explicações revoltosas, e as soluções propostas. Como o universo dos E.U.A. nos parece familiar, somos sobranceiros e opinativos com os dados que não nos cabem na cabeça - nomeadamente a questão do (des)controlo de armas, ou até a vigência da “2nd Amendment”. São alvos fáceis para escrita abundante. A parcialidade está na consternação, mas também na estupefacção e na intransigência.
Já na questão síria, sentimos a tal distância cultural, e isso vai redundar numa espécie de etiqueta que constrange a escrita. Tenho poucas dúvidas que as facções em conflito são todas más e (tal como num Sporting vs Porto) gostava que todas perdessem. Tenho também poucas dúvidas que, com o Daesh fora do cenário, Bashar al-Assad é o pior em campo, manchando ainda de culpa os seus aliados. A chatice é que, se me lanço em críticas generalizadas para um lado do mundo tão remoto e desfavorecido, ponho-me a jeito para ser policiado pelos justiceiros-privilegiados-complexados das redes sociais.
Os vícios do ego transformam-se em facciosismo e, no fundo, já nada é consternação (tudo é vaidade). A estreiteza de ideias tem espectro político largo. Num lado está uma esquerda que reflecte os tais preconceitos do privilégio, uma esquerda intransigente com os que se assemelham a nós. É a esquerda que, no Médio Oriente, só é capaz de demonizar países onde houver traços de democracia e desenvolvimento. Depois há a direita que, tão identificada com a sua própria imagem, se vê constantemente em risco de ser contaminada por caras diferentes. É a direita da xenofobia, que recentemente ganhou gosto a escrever “primeiro os nossos sem-abrigo”, não vá a solidariedade ser malbaratada com fedelhos ranhosos da Ásia Ocidental.
“Seguidamente pus-me a observar todas as opressões que se praticam sobre a face da Terra - as lágrimas dos oprimidos, sem haver ninguém que intervenha a favor deles, ao mesmo tempo que o poder se concentra do lado dos opressores. Acho que os mortos são mais felizes do que os vivos. E mais felizes do que uns e outros são os que ainda não nasceram e não viram todas as maldades que se praticam na Terra. Então descobri que a força que leva basicamente os homens para o sucesso é a concorrência com o seu próximo. Mas também isto é vaidade, e uma corrida atrás do nada.” - Eclesiastes 4:1-4
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
A falta de palavras para descrever o conflito sírio deve-se, sobretudo, a um factor: não há palavras.
Com o mesmo título do meu artigo, está o projecto musical de Jónatas Pires. Sempre inserido em causas solidárias, desta feita vai juntar esforços para celebrar os 40 anos do “Desafio Jovem”, uma notável instituição sem fins lucrativos que visa a prevenção, reabilitação e reinserção social de pessoas com dependências e comportamentos aditivos.
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