Aguentem só mais um bocadinho de autobiografia, hoje sinto-me no direito de impingi-la. Tenho velas para soprar – muitas de vida, e ainda outra de cronista – e o meu desejo aniversariante é o de poder escrever sobre o que me apetece, não sobre o que me parece que é preciso. Por isso vou voltar aos Setembros, onde comecei eu, e onde começou uma paixão por um filme — exactamente aquele sobre o qual quero escrever hoje. Aguentem só mais um bocadinho de autobiografia, sinto-me no direito. Efectivamente têm sido sempre os meus olhos (enrugados, de velho) a pautar as coisas que aqui publico, e não poucas vezes tenho-me feito passar por crítico de cinema e escrito sobre o assunto. Só que hoje decidi recuar na crítica e avançar no terreno, repartindo assim funções com o próprio filme: vou explicá-lo na mesma medida em que ele me explica.
Há pouco destapei esse ano de 1979 que ouviu o meu primeiro choro, mas não cheguei a esclarecer a velhice oficiosa, que também tem que ver com choros. Ando há quase 38 anos a construir sobre mim uma personagem precocemente envelhecida, às vezes reaccionária, frequentemente paternalista, a expressar-se de forma arrastada como quem se queixa das cruzes. É verdade que isto pode não passar de uma táctica desesperada para parecer sempre novo: se exagerar na simulação da velhice, então vou tornar a verdadeira velhice pouco credível. É como o rapaz que gritava que vinha lá o lobo — quando eu aparecer de bengala, careca, desdentado e sem controlo da bexiga vão dizer “lá está o Úria outra vez a fingir que é velho! Já não nos engana!”. Ando, então, desde 79, a amontoar na personalidade pequenos pedregulhos intratáveis e frios. Quando dou por mim, pareço um monólito (mas não é aquele monólito polidinho do 2001 do Kubrick, é mesmo 1,89m de rochedo rugoso) sem sentimentos.
A esta altura já se me escapou a data do nascimento e a estatura, mas sem riscos de roubo de identidade, porque ninguém quer passar-se por uma pedra. Mantenho a promessa de que isto vai deixar de ser sobre mim, mas ainda não vos massacrei o suficiente com o ponto que preciso de provar. Ganho a vida a escrever sobre os meus próprios sentimentos, por isso parece contraproducente incorporar-me numa personagem que não os tem. Mas, no fundo, isto funciona com a mesma lógica da psicologia invertida que assumi no parágrafo anterior (aquela da velhice simulada), pois se sou um bloco sem sentimentos, então de cada vez que eles escaparem parecerá que se tratou dum grande acontecimento. Só que o forte resguardo autoimposto roubou-me a capacidade de me comover; sou sensível a quase tudo mas não me comovo com quase nada. Avisei que isto tinha que ver com choros: a falta deles.
Onde é que o cinema entra no meio de tão extensa ladainha confessional? – perguntarão os resistentes que chegaram a este parágrafo. Simples: a minha tese é que o cinema pode muito bem ser quase tudo, uma vez que emociona esta pessoa que não se comove com quase nada. Não falo só de chorar quando num filme morre o cãozinho, refiro-me a coisas por norma pouco visíveis mas abalroantes. E é um perigo! Um perigo desgraçado para quem finge ser velho e rochoso.
Cheguemos ao filme, e como ele me chegou. Era o início de Setembro (déjà vu!), e entre o fim das férias e o mortífero aproximar doutro aniversário, eu estava mais empedernido que nunca. Duro de 1979, escolhi ver um filme de duros de 1979. “The Warriors” do (duríssimo) Walter Hill é daquelas obras precedidas pelo culto, e bastava olhar para a capa da k7 VHS para perceber porquê. A história tem o condão de passar-se numa Nova Iorque dum futuro distante, precisamente assustadora por ser igual à Nova Iorque do tempo em que a fita foi rodada: a Big Apple letal e aterrorizante, algures entre monstro e campo de batalha. Essa New York City terá desaparecido só no início dos anos 90 quando o Mayor Giuliani transformou a selva urbana numa das cidades mais seguras dos Estados Unidos, sendo a série "Seinfeld" o cartão de visita mais visível dessa nova Nova Iorque esperançosa (para os mais jovens que não se lembram de “Seinfeld”, era assim como todas as sitcoms de que vocês gostam só que em muito melhor – cá está o paternalismo do velho, mas não deixa de ser verdade).
O meu objectivo hoje nunca foi o de redigir uma crítica (para isso recomendava aos mais persistentes que procurassem a análise curta e certeira que o Miguel Arsénio fez ao filme no site RottenTomatoes. Estou inteiramente de acordo com o Miguel, e no pormenor da “multidão analógica” tira-me as palavras da boca). No entanto, aquilo de que me interessa falar é sobejamente ignorado pelos críticos, e até me dei ao trabalho de ler uns quantos. Para além de todo o estilo, de toda a aspereza, de toda a estoicidade cartoonesca, o que me marcou desde o primeiro visionamento do “The Warriors” foi o coração. Estive ali frente a frente com o filme, ambos de 79, ambos duros, mas quando o coração no ecrã derreteu – e foi bem subtil tal degelo – também eu amoleci. Comovi-me.
Esta obra de Walter Hill tem uma das mais curtas, bruscas e imperceptíveis histórias de amor, mas ganhei-lhe afeição que encontro em poucos filmes, nenhum deles curto, ou brusco, ou imperceptível. Não resisto a colocar por aqui a cena que mais me desarmou:
Anos mais tarde quando revi este momento escrevi o seguinte apontamento num blogue:
"Nem sempre os filmes de culto são conhecidos por cenas de culto, mas nunca esqueceria o “The Warriors” do Walter Hill só por causa deste pedaço. O momento de maior beleza dá-se quando um personagem é proibido de se embelezar; o momento de maior ternura está num agarrar, nada ternurento, de um braço. E que coisa menos harmoniosa poderia haver, num metro nova-iorquino em 1979, do que um molho de flores brancas? Não será por apanhar o bouquet que se oficializa o futuro enlace — é por todo o resto.
Estas histórias de amor, em que o homem reage com dureza às personagens femininas ultra-emancipadas, recordam-me os pares nos filmes do Howard Hawks (assim, de repente, Bacall/Bogart ou John Wayne/Angie Dickinson) e não há ternura mais efectiva do que aquela que ultrapassa a rigidez inicial. Walter Hill sabia-o bem, fê-lo bem. Ainda para mais, quis oferecer uma guerreira a um guerreiro. “Não vos ajunteis a um jugo desigual”, é mandamento que só facilita. Take pride."
Pouco tempo antes desta cena, o casal tem uma troca acesa de palavras em que o warrior Swan censura o estilo de vida promíscuo da selvagem Mercy. Um crítico americano avaliou o momento como uma “parte dispensável do filme, de moralismo foleiro”. Foleira é a sua mãe, senhor crítico! Ao sair do metro, Swan apanha o bouquet de flores, entrega-o a Mercy e diz-lhe “I just hate seeing anything go to waste.” "Detesto ver uma coisa boa a estragar-se.” BOOM!! Moralismo explicado, parábola fechada, este que vos escreve comovido. Swan a largar o colete de patinho feio gangster para se transformar em cisne (swan, em inglês), ao ter misericórdia de Mercy (misericórdia, em português) – não há insulina que chegue para esta montanha de trocadilhos açucarados.
Finalizo atentando os mais distraídos de que o título de hoje, para além de servir o tema, também é o título espertalhão em Portugal do filme “Road House”, que não data de 79 (é de 89, actually), nem tem coração. Mas tem o cabelo comprido do Sam Elliot. Comovente.
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