O interesse dos Estados Unidos por tudo o que se passava a Sul do continente é bem sabido, documentado e ainda continua a gerar justificados e fortes anticorpos na população dos países envolvidos.
O período mais violento ocorreu quando os americanos incentivaram a apoiaram a ditadura militar brasileira de 1964-1985. Na altura, o que os motivava, além dos interesses económicos, era o medo do comunismo, concretizado na vitória de Fidel Castro em Cuba (1959) e nos diversos regimes de esquerda que tomaram o poder em vários países - nomeadamente no Chile em 1973. O regime de Salvador Allende também foi destruído pela conspiração do ditador Pinochet, com o apoio norte-americano, e durou até à redemocratização do Chile, em 1990.
O atentado às Torres Gémeas de Nova Iorque, em 11 de Setembro de 2001, pode ser considerado o marco que mudou completamente os interesses estratégicos mundiais dos Estados Unidos, embora a mudança já viesse a acontecer antes e se tenha assumido completamente a partir daí.
Aconteceram duas situações: primeiro, os americanos viram que o seu principal adversário eram os movimentos jihadistas e muçulmanos radicais em outras regiões do globo, impulsionados ou não pela China, Rússia e Irão. Segundo, perceberam que os movimentos comunistas (ou “socialistas”) na América Central e do Sul mudavam constantemente e não eram uma ameaça nem ideológica nem comercial para os Estados Unidos. Com excepção de Cuba e da Venezuela, que se tornou uma ditadura socialista em 1968, com Rafael Caldera (e não com Chávez, em 1998), os países latino-americanos foram passando por uma sucessão de governos de todas as cores que, em termos gerais, já não constituíam a famosa “ameaça comunista” da Guerra Fria (1947-1989).
Em 2019, com a vitória eleitoral do militar de extrema direita evangélica Jair Bolsonaro, as relações entre Estados Unidos e Brasil mudaram radicalmente. Bolsonaro, além da sua política errática de extrema-direita, anti-ambientalista e fortemente evangélica, era um admirador incondicional (pode mesmo dizer-se um imitador ridículo) do Presidente Donald Trump, tomando o partido dos norte-americanos na arena internacional - mesmo quando os norte-americanos não precisavam desse apoio, e até fez uma visita caricata à Casa Branca. Considerava-se o “Trump brasileiro”.
Nessa lógica, quando perdeu as eleições de 2022, tentou um golpe de Estado em Brasília parecido com o de 6 de Janeiro de 2021 em Washington. Tal como o seu herói, a derrota eleitoral trouxe para a luz do dia as inúmeras falcatruas que tinha cometido enquanto Presidente (Bolsonaro) e actualmente está com residência fixa, sem passaporte, e a responder por vários processos judiciais que o podem levar, aos seus filhos e associados mais próximos, a penas de prisão efectiva.
Vamos sair agora dos princípios da Guerra Fria e dos meios de comunicação social pré-internet. Estamos em 2024, o mundo está multi-polarizado e as redes sociais influenciam a opinião de milhares de milhões de pessoas.
Não tenho espaço para contar aqui as peripécias dos negócios e opiniões do multi-milionário Elon Musk, um homem genial, temperamental e capaz de grandes realizações e atitudes desgraçadas. Alterna com Jeff Bezos e o francês Bernard Arnauld na classificação de homem mais rico do mundo. Nascido na África do Sul, com nacionalidade sul-africana, canadiana e norte-americana, é conhecido por grandes realizações - os carros Tesla, o projecto espacial Space-X e a rede global de satélites Neuralink - mas também está nas manchetes por ser pró-Trump e ter destruído a rede social X (ex-Twitter), rebatizada X e tranformada numa plataforma confusa de ideias radicais e estúpidas, apoios surreais e vinganças pessoais.
É preciso salientar que existem muitas críticas sobre a excessiva influência que Musk exerce sobre a política norte-americana, sobretudo através da rede de satélites Neuralink, do controle do X ex-Twitter, e do programa espacial Space-X. Por muito rico que seja, não tem qualquer cargo no aparelho de Estado que justifique a dependência deste à suas manias.
O segredo, ou o sucesso duma rede social depende, em última análise, da capacidade de filtrar as “fake news”, um trabalho insano que determina o número de subscritores e de anunciantes. As redes sociais dedicam muito trabalho - e agora Inteligência Artificial, AI - a esta tarefa impossível, mas pelo menos mostram uma preocupação constante com a questão. A rede X, nem por isso. Reflete as opiniões pessoais de Musk, que interfere constantemente na sua gestão e muda de opinião constantemente. O número de usuários é desconhecido (depende da fonte, e a empresa não divulga) mas um bom cálculo é de 600 milhões de utilizadores, 90% dos quais nunca posta nada.
Entra em acção o Supremo Tribunal Federal do Brasil, um órgão colectivo de onze membros dirigido pela ministra Cármen Lúcia desde 5 de Maio. Um dos ministros, Alexandre de Moraes, encarregado de investigar a desinformação das redes socais no Brasil, proibiu várias contas do X, por divulgarem fake news sobre os partidários de Bolsonaro e as actividades anti-governamentais. Seria uma atitude “normal”, que se pratica em muitos países. Normalmente gera discussões e processos judiciais, mas em geral as redes sociais preferem apagar as contas discutíveis do que meter-se em custas jurídicas.
Não foi o que aconteceu neste caso. Elon Musk mostrou-se indignado, recusou acatar a ordem judicial e diz que vai processar o Supremo Tribunal Constitucional brasileiro.
Não contente com isto, e usando da sua enorme influência nos Estados Unidos, conseguiu que ocorresse uma audiência sobre o assunto numa comissão do Congresso norte-americano!
A audiência, que teve a presença de meia dúzia de congressistas norte-americanos, dois democratas e quatro republicanos - com o Estados Unidos na emergência em que estão, deveriam ter mais com que se preocupar - foi uma situação de certo modo surreal; que direito têm os americanos de se interessar pelas decisões do STF brasileiro - cheira às velhas interferências, sem ter qualquer resultado prático, além de acirrar o anti-americanismo da opinião pública brasileira.
Os republicanos presentes alegaram perseguição e censura e os democratas, evidentemente, estabeleceram pouco edificantes relações entre a atitude de Bolsonaro e de Trump perante as derrotas eleitorais.
Três das quatro pessoas ouvidas apontaram supostas violações de liberdade de expressão, sobretudo pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal: o ex-apresentador da rádio Jovem de Pan Paulo Figueiredo; o CEO da rede social conservadora Rumble, Chris Pavlovski; e o jornalista americano Michael Shellenberger. O quarto integrante do painel, indicado por democratas, foi Fábio de Sá e Silva, professor de estudos brasileiros da Universidade de Oklahoma, que rebateu as acusações. A republicana Maria Salazar questionou se Moraes não seria um fantoche de Lula. Já a democrata Sydney Kamlager-Dove afirmou que o 8 de janeiro em Brasília e teorias conspiratórias são a verdadeira ameaça à democracia no Brasil. E comparou a estratégia com a da direita americana, que, segundo ela, usa o debate brasileiro para se vitimizar frente às acusações na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Este debate foi um fait-divers que não teve nenhuma repercussão na comunicação social americana, que já tem bastante com que se preocupar. Os resultados do que se passou são nulos. Mas podem tirar-se ilações inóspitas: como os americanos ainda acham que têm algum poder de opinião (para não falar de decisão) sobre o que se passa no Brasil; como Elon Musk, sentindo-se ameaçado nos seus supostos poderes derivados do X, se atreve a atacar o Tribunal Federal de outro país.
Tudo isto é ridículo, e apenas mostra que os velhos fantasmas das interferências dos interesses empresariais norte-americanos ainda podem ser ressuscitados. Afinal de contas, o que está em prática é o controle das instituições brasileiras sobre redes sociais de outro país que têm influência no Brasil.
Esperemos que Musk ganhe juízo - o que não acontecerá - e que o assunto morra sem mais peripécias ou consequências. Mas os fantasmas, uma vez acordados, precisam de encantamentos para desaparecer...
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