Os cidadãos eleitores de duas autocracias deram neste domingo um notável exemplo de participação: na Turquia, entrou nas urnas o voto de 88,4% dos 64 milhões de inscritos; na Tailândia, 75% dos 52 milhões. É notável o valor que estes cidadãos dão ao voto. São percentagens de afluência que desafiam a muito mais baixa participação em democracias ocidentais.
Em Portugal, nas legislativas antecipadas em 30 de janeiro do ano passado apenas votou 51,4% do colégio eleitoral com 10,8 milhões de cidadãos. Nas presidenciais de 2021, a baixa afluência ainda foi mais inquietante: apenas 39,2%.
A muito alta participação eleitoral na Turquia e na Tailândia mostra como os eleitores valorizam o voto para as escolhas sobre o seu futuro.
Na Turquia, estão evidenciadas as muitas divisões fundas entre a cidadania deste complexo país: há a Turquia laica e a religiosa; a urbana e a rural; a jovem e a menos jovem. Os estudos sobre as motivações do eleitorado sugerem que só depois destas condicionantes entra para a aritmética eleitoral a divisão entre esquerda e direita.
O aspirante Kiliçdaroglu ganhou a maioria do voto laico, urbano e jovem. Também o das regiões curdas.
Erdogan impôs-se no país muçulmano, rural, menos jovem e mais nacionalista.
Toda a costa ocidental da Turquia (com Izmir), tal como o sueste curdo, deu vitória a Kiliçdaroglu.
A enorme Turquia interior, a Anatólia profunda, votou amplamente pela continuidade de Erdogan.
A primeira volta da eleição presidencial turca determina que são agora necessárias mais duas semanas de nervos em batalha política para uma finalíssima, em 28 de maio, onde vai ficar finalmente decidido o posicionamento político da Turquia no futuro próximo: mais pró-ocidental e pró-NATO (com Kiliçdaroglu) ou mais aberta a Putin (com Erdogan.
O atual presidente, Erdogan, parte com 49,5% (27.088.360) dos votos; Kiliçdaroglu, com 44,8% (24.568.196). Ogan, o terceiro classificado, recebeu 2.829.634 de eleitores que podem ser decisivos para o resultado final.
A campanha fica relançada com Erdogan na posição de favorito, a reivindicar ter feito da Turquia uma potência global. Mas Erdogan enfrenta a batalha mais difícil em 20 anos de poder. Mais de metade do eleitorado turco não o quis. Faltou-lhe uma faixa pequeníssima. Mas faltou.
O que lhe terá escapado é a fatia de 5,2% de eleitorado que preferiu o candidato Sinan Ogan que se colocou como o representante do nacionalismo turco ultra à direita e que reivindica a recuperação pela Turquia da grandeza antiga do Império Otomano. Por ser um eleitorado fortemente anti-curdo é natural que na finalíssima vote Erdogan. Se houver transferência plena de voto, a reeleição do “sultão” fica muito provável. Mas há resistências que podem travar essa deslocação do voto para Erdogan.
O transcendente voto em 28 de maio é, ainda mais, um referendo sobre o político que liderou a Turquia nos últimos 20 anos. Mas não é apenas Erdogan o que está em causa, é o modelo de país, mais nacionalista e autoritário ou mais aberto e democrático.
Há hoje frustração nos dois campos. Os de Kiliçdaroglu acreditavam que podiam ganhar à primeira. Os de Erdogan não acreditavam que o “sultão” deles falhasse a reeleição.
A gestão da frustração é uma estratégia decisiva para a escolha da liderança de um país com 85 milhões de pessoas, que é ponte entre Ocidente e Oriente, que toca tanto o Mediterrâneo como o mar Egeu, o de Mármara e o Negro, e que tem fronteira terrestre com oito países. É um país da NATO mas que irrita os nervos dos aliados, porque o poderoso presidente Erdogan barra a entrada da Suécia na aliança, e abraça o amigo Putin.
Kiliçdaroglu encabeça uma coligação muito heterogénea. Apareceu nesta eleição como o candidato dos americanos e dos europeus. São realidades que os estrategos deste candidato da oposição reconhecem terem suscitado dúvidas e resistências que ficaram por dissipar. Têm 15 dias para explicar.
Erdogan é agora mais favorito, mas tudo continua a poder acontecer no epílogo destas próximas duas semanas de alta expectativa. Sobretudo porque a imprevisibilidade do eleitorado e superior à capacidade de previsão dos politólogos. Não é de excluir que a mobilização anti-Erdogan (que supera a pró-Kiliçdaroglu) venha a superar a que prefere o “sultão”.
Também, porque o eleitorado turco demonstrou que, apesar da constante deterioração da qualidade da democracia turca nestes últimos oito anos, após a “intentona” de 2015, com tanta purga, a cidadania continua robusta, política e democraticamente mobilizada.
Essa mesma aspiração democrática ficou evidenciada na Tailândia, onde a maioria dos eleitores escolheu dois partidos pró-democracia (o Move Forward e o Pheu Thai) para impor uma severa derrota aos generais da Junta há nove anos no poder em Bangkok. Mas, apesar do veredicto das urnas, a transição para a democracia ainda vai ser muito complexa na Tailândia, porque os generais escreveram uma constituição que tem travões à perda do poder deles. O povo, porém votou e disse o que quer.
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