1. Dá vergonha o que o líder parlamentar do PS, partido no governo de Portugal, disse sobre os acontecimentos que começaram no Bairro da Jamaica. Marcelo, o presidente empático, foi só equívoco. O PCP emitiu um monólito institucional. E a direita, igual a si mesma.
A grande maioria dos que foram ou querem ser eleitos continuam a não ligar os pontos entre a história portuguesa e o que acontece na Linha de Sintra, em Loures ou na Margem Sul, onde se concentra a população negra. Têm responsabilidade não só no que não muda, como no que pode rebentar. Incluindo responsabilidade na forma obscena como são ameaçados aqueles que vivem o racismo, ou lutam contra ele.
Isto não é um problema “isolado”, muito menos “inédito”. É um problema de Portugal, da elite às massas. E podemos começar por aí: o Jamaica é Portugal, passado, presente e futuro.
2. Para quem não acompanhou, um resumo. Domingo, habitantes do Bairro da Jamaica, Seixal — aquilo a que no Brasil se chama uma favela — filmam agentes da PSP a agredir a mãe e o pai de um jovem que ia ser detido, além de outras pessoas. Socos, empurrões, cassetetes, gente arrastada no chão.
Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, partilha o vídeo no Facebook, escrevendo: “São 4 minutos de violência policial no bairro da Jamaica. Podem ir começando a pensar em desculpas mas não há explicação para isto. E o Bloco vai exigir responsabilidades.”
A PSP diz que chegou ao Jamaica respondendo a uma chamada por distúrbios, que foi recebida com pedras, uma delas atingindo a boca um agente, e que a sequência filmada pelos habitantes só mostra o que aconteceu depois, quando foram deter o suposto apedrejador.
O vídeo circula nas redes sociais e nos media. Segunda-feira, uma manifestação contra a violência policial acontece no Terreiro do Paço e sobe a Avenida da Liberdade. A PSP dispara balas de borracha, alegando pedradas.
As caixas de comentários incendeiam-se. Mamadou Ba, assessor do Bloco e dirigente do SOS Racismo, desabafa no Facebook: “Sobre a violência policial, que um gajo tenha de aguentar a bosta da bofia e da facho esfera é uma coisa é natural, agora levar com sermões idiotas de pseudo radicais iluminados é já um tanto cansativo, carago! Há malta que não percebe que a sua crença ideológica num outro modelo de sociedade, muitas vezes assente no privilégio doutrinário e não só, não salva quem todos os dias é violentado com o racismo. Portanto, fica o aviso que por estas bandas, não pastarão.”
Mortágua e Mamadou são alvo de insultos racistas e ameaças em páginas seguidas por polícias e ex-polícias. Exemplos: “Metam-me fechada numa sala só com ela”; “Cortar o Rendimento Social de Inserção a esta gente e entravam na linha”; “Corda nova, pedra velha e pendurado na ponte Oliveira Salazar”; “Este indivíduo [Mamadou Ba] por mim era o primeiro a levar no focinho”; “Porco” ; “Tiro no centro da testa”; “Esse verme que vá para a terra dele”; “Essa javarda [Joana Mortágua] quer é votos dessa gente miserável, carga neles!”; “Esta gaja devia era de levar nos cornos”. Pressionada, a PSP denuncia as páginas de Facebook “Carro de Patrulha 1”, “Carro de Patrulha 2” e o perfil “Charlie Papa”, anunciando processos disciplinares.
Em bairros degradados da Margem Sul e de Loures há notícias de caixotes de lixo e carros incendiados, um carro da polícia apedrejado, cocktails molotov contra uma esquadra.
Uma nova manifestação contra a violência policial é convocada para esta sexta-feira, em frente à Câmara do Seixal, às 16h. A família agredida domingo no Jamaica grava um vídeo em que pai, mãe e filho apelam a que o protesto aconteça de forma pacífica. Por sua vez, a extrema-direita do PNR convoca uma manifestação também para hoje, ao fim da tarde, contra “a criminalidade”, o “enxovalho da polícia” e o Bloco de Esquerda, desde o Terreiro do Paço à sede do partido. “Não podemos permitir que a agenda desses inimigos de Portugal, que tantos danos já fez na nossa cultura, nos valores da vida e da família, transforme o nosso país numa qualquer república das bananas, sem lei nem ordem ao estilo de muito país africano”, apelam.
3. No meio de tudo isto, Carlos César, líder parlamentar do PS, não achou melhor do que simplesmente voltar-se contra o Bloco, acusando-o de “acirrar ânimos”, de “perturbar a intervenção das forças da ordem, que têm por dever assegurar a tranquilidade pública”, condenando "veementemente as declarações que a esse propósito têm sido feitas”, por não contribuírem “para a tranquilidade e para o bom esclarecimento do que está em causa”. E o que está em causa, disse, são situações “inéditas e pouco comuns” em Portugal. Calha, claro, que o inédito não pode ser pouco comum, e vice-versa. Mas passemos por cima dessa incompatibilidade, porque não é pouco comum, muito menos inédito, o que realmente está em causa.
Pasmo como o líder parlamentar do partido no governo, com estas declarações, esfrega na cara de centenas de milhares de portugueses e residentes aqui que eles realmente não contam. Eles realmente não existem. Eles realmente não são Portugal.
Qualquer político português tem obrigação de pensar não só sobre o que se vê naquele vídeo, como no que se ouve nele. O que se vê nele é, por um lado, a miséria, o abandono em que aquelas pessoas têm vivido; por outro, que podem ser tratadas por polícias como nenhum branco seria tratado, como nenhum bairro de brancos seria tratado. E o que se ouve nele é como se sente quem é negro e mora nestas condições em Portugal. Como se sente face às autoridades. Como se sente em relação a este país. Um país que tem a história que tem: a história que levou estas pessoas a estarem ali, assim.
O Jamaica não existe por acaso. Como a Cova da Moura, ou o 6 de Maio, ou a Bela Vista, vem dos porões das naus. É um porão atulhado de negros que podem ser achados nas obras de milhões do Portugal Top 2019, a construírem os colégios e as universidades onde nunca vão estudar, os hospitais privados onde nunca serão tratados, as boas casas onde nunca viverão.
“Tranquilidade pública” não é o que se vive todos os dias na Linha de Sintra, em Loures, na Margem Sul. “Acirrar ânimos”? Seria ridículo se não fosse ofensivo. Muito calmos estão os ânimos, espantosamente calmos, nas favelas que ainda há e nas urbanizações pobres que se multiplicam na periferia de Lisboa. Não conheço bem Loures e a Margem Sul mas a Linha de Sintra é o meu comboio. Um país negro, em batalha diária para ficar vivo, que se sente tratado como menos ou inimigo, e que é todo um resultado da história de Portugal. O país que Carlos César faz de conta que não existe.
A politiquice é o contrário da política. Não foi para isso que César foi eleito. Zero entendimento do país, do seu passado e do seu presente. Zero visão do futuro. Zero vezes zero. Irresponsabilidade é isto, e não que um dos raríssimos negros na política em Portugal, Mamadou Ba, a quem devemos muitos anos de activismo anti-racista, ele que sofre o racismo diariamente, chame bosta à actuação violenta da polícia. A “bosta da bófia” é o mau comportamento policial. E que desabafar isso num post de Facebook “indigne” tanto português que nunca será tratado como podem ser tratados os negros em Portugal só não surpreende porque, lá está, essa “indignação” não é pouco comum, muito menos inédita. Ela reina nas caixas de comentários, hoje um dos instrumentos de articulação da xenofobia, do fascismo e da violência.
4. E Marcelo, onde esteve o seu ombro amigo? “Não há, do ponto de vista da democracia, nada que seja excepcionalmente positivo em generalizar comportamentos isolados”, foi o comentário do presidente, segundo li. Que frase, hem? Quanto para dizer a quem se sente não-cidadão ou mesmo não-humano. Mas Marcelo é o presidente que quando tomou posse voltou a homenagear os heróis das navegações sem uma palavra pelos milhões de exterminados e escravizados. E desde então tem tratado a violência colonial e a escravatura como acontecimentos encerrados, sem relação com o racismo contemporâneo, o que se passa em Portugal agora.
Já o PCP declarou por escrito que “não alimentará a corrente dos que, a propósito de factos concretos e pontuais, agem para os generalizar” porque “seria animar um ambiente de insegurança e intranquilidade”. Mais: “Eventuais situações de recurso a violência não justificada, naturalmente condenável e que deve ser prevenida, não podem contribuir para desvalorizar a acção das forças de segurança e dos seus profissionais.” Uma daquelas reacções comunistas que não cairia mal ao CDS.
5. Do que vi, só Francisco Assis, do PS, me pareceu fazer a diferença. Por um lado, porque disse coisas que têm de ser ditas por políticos, e tinham absolutamente de ser ditas agora: “Jovens a quem vedam o acesso a quase tudo, estigmatizados pela herança genética, pelas barreiras culturais, pelas barreiras sociais, por representações culturais fechadas e por uma boa dose de incapacidade política para obviar a tudo isto. É por isso natural e inevitável a revolta. É mesmo a única atitude moralmente possível.”
Por outro, um mínimo de sensatez quanto à partilha do vídeo feita por Mortágua: “Ao fazê-lo tomou partido por aquela que lhe pareceu ser a parte mais fraca e exprimiu a intenção de questionar no plano parlamentar o comportamento das forças policiais. A sua actuação pode ser criticada, já que vivemos numa sociedade democrática e pluralista, mas não pode ser vituperada nos termos obscenos e trogloditas que têm caracterizado muitas das acusações que lhe têm vindo a ser dirigidas. É desde logo ridículo pretender responsabilizá-la pela manifestação de segunda-feira ou pelos distúrbios entretanto ocorridos.”
6. Um mês antes do que se passou no Jamaica, o primeiro-ministro António Costa foi visitar o bairro, que está em processo de realojamento. Aí, cercado de habitantes, percebeu “que a realidade era mais dramática do que a ficção”. Referia-se ao filme “São Jorge”, que o despertara para o Jamaica. Costa aproveitou a visita para garantir que o governo quer “chegar aos 50 anos do 25 de Abril sem nenhuma família a viver sem condições condignas”. Indicou que ainda há 25 mil famílias em Portugal nessa situação.
Que em 2024 não haja nenhuma, é o mínimo que se pode pedir a quem governa. Mas não basta. Falta trabalhar tudo o resto: o preconceito, o racismo, a xenofobia, o fascismo latente, ou já exposto. E isso passa por descolonizar Portugal.
7. Morei anos no Rio de Janeiro. Vi a polícia militar em acção. Não quero essa polícia abusadora, também ela resultado do abuso, em nenhum lugar do mundo. Não quero nada da violência desta semana, ninguém quer, não é? À excepção, claro, dos fascistas, que só ganham quando há pânico e medo. Ninguém quer o ressentimento que leva aos cocktail molotov, às pedradas, esses e essas, sim, muito pouco comuns para o que se passa todos os dias na vida dos portugueses afrodescendentes, e dos africanos residentes.
A polícia não existe para proteger os brancos. Mas é exactamente isto que sentem os não-brancos. E é exactamente o que os políticos têm obrigação de garantir que não sintam. Que não haverá mais razões para sentir isso.
Enquanto houver gente em Portugal que sinta que é automaticamente suspeita para as autoridades, ou tratada de forma diferente, os políticos não estarão a fazer o seu trabalho. É disso que devem ter vergonha, é isso que devem combater, em vez de se voltarem contra quem protesta por isso existir.
8. Não acredito que seja possível uma mudança de facto sem descolonizar as cabeças. Sem ir atrás, à história, enfrentar a sua corda de mortos, fazer justiça aos que foram escravizados, exterminados, lidar com os mil sinais de tudo isso hoje, no espaço público, nas escolas. Há um trabalho gigantesco a fazer, não é para um governo nem dois. Mas quando em 2017 se inaugura uma estátua de Vieira com indiozinhos, e em 2019 se continua a discutir um Museu das Descobertas, e os manuais continuam a falar dos escravizados como produtos, e os políticos acham que nada disto tem relação com a vida de centenas de milhares de negros em Portugal agora, isso são sinais de que estamos a fazer tudo ao contrário.
O problema não é o vídeo da violência. É a violência. O ressentimento não nasce de protestarmos. Nasce do mal estar lá, quase sempre tapado, tapado por séculos. Política seria encará-lo.
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