1. O maior aeroporto do país já estava a rebentar. O maior metro do país já estava a rebentar. Agora ficámos a saber que todos os comboios do país também estão a rebentar. E que a partir de Agosto vai ser pior. Isto é Portugal, a nova meca da Via Láctea.
2. Em Portugal, se andarmos a pé, não há passeios, ou os passeios estão cheios de carros, ou somos atropelados nas passadeiras. Se andarmos de bicicleta ou mota somos alvo de todos os ligeiros e pesados. Se andarmos de carro, somos alvo de todos os outros ligeiros, todos os pesados, e ficamos horas parados, porque há demasiados carros, para não falar do estacionamento. E se andarmos de transportes colectivos sabemos bem como as elites deste país não andam de transportes colectivos.
3. Se as elites deste país andassem de transportes colectivos seria um duplo milagre. Milagre um: os transportes colectivos eram excelentes. Milagre dois: as elites eram menos elite, porque conheceriam um bocadinho melhor o povo dos transportes colectivos, o que teria imensas vantagens técnicas, políticas, económicas, sociais, históricas e diplomáticas.
Por exemplo, um respeitado embaixador como Seixas da Costa não cometeria o texto que dele acabo de ler, aprovando o “Museu das Descobertas”, com o argumento de que a “nós” cabe celebrar o que foi grande, e aos “outros” caberá lamentar o que foi bárbaro. Ah, senhor embaixador, um anito a andar de comboio na Linha de Sintra e isso passa-lhe. É que aquelas carruagens estão cheias de “nós” e de “outros”, e isso por uma razão: somos todos nós, para trás e para a frente nos comboios da mais populosa periferia de Portugal. Nós, brancos, pretos, amarelos, cristãos, evangélicos, muçulmanos, sincréticos, falantes de português ou de cem línguas africanas, asiáticas, eslavas, a caminho daquela mesquita das Mercês, daquela cachupa da Cova da Moura. Todos unidos pelos comboios que cada vez mais são menos, apesar de as pessoas que neles andam serem cada vez mais. Pois é.
4. A partir de Agosto os comboios serão menos em todo o país porque a CP não tem trabalhadores suficientes nem comboios suficientes nem manutenção suficiente. A CP está em ruptura. E ainda não se alcança o fundo.
Mas em 2017 os passageiros aumentaram em todos os tipos de comboio: alfas, intercidades, regionais, suburbanos, internacionais. E com eles as receitas. Portanto, estamos a falar de uma empresa cem por cento pública, responsável por cada vez mais milhões de pessoas e que cada vez factura mais milhões de euros, mas que neste momento está a alugar comboios e autocarros substitutos, e autorizou a entrada de…? Cinquenta trabalhadores. Comboios alugados. Autocarros substitutos. Cinquenta novos trabalhadores. Não se acredita. Uma empresa que transporta por ano 122 milhões de pessoas. A maior empresa de transportes terrestres do país. Uma das maiores empresas públicas portuguesas.
A administração da CP deixou as coisas chegarem a um ponto (explica Carlos Cipriano no “Público”) em que até ter comboios novos, ou reparar os que existem, e ter gente para os reparar, e recrutar todas as pessoas de que precisa, vai levar anos.
5. Voltando à Linha de Sintra. Por alguma razão o IC19 é a estrada mais movimentada em Portugal (100 mil carros dia). Por alguma razão os comboios para Sintra são a mais movimentada linha férrea portuguesa (dos 122 milhões que a CP transporta, 83 milhões estão nos comboios urbanos de Lisboa, dos quais os de Sintra são o maior bolo). E não apenas: os comboios urbanos de Lisboa são também os que mais aumentam de passageiros (7,3 por cento de crescimento).
Isto quer dizer muita gente, e cada vez mais gente, a morar entre Lisboa e Sintra. A que se junta o boom de turistas, cada vez maior. Então, numa situação de crise da CP seria de esperar que os cortes se focassem noutras linhas, não tão povoadas. Mas os cortes já chegaram até à Linha de Sintra. Já há comboios suprimidos nas horas tardias. E os horários mudam a partir de Agosto: menos comboios em geral. Bem no pino do Verão, quando os visitantes tendem a aumentar.
6. Leio que o aeroporto de Lisboa foi o sexto pior do mundo — entre mil e tal aeroportos — quanto a atrasos. Há filas para tudo. Não há espaço vital. As pessoas desmaiam. Temo o que será a situação para os lados do SEF. E nem vou falar de táxis neste texto.
Leio que o presidente da câmara está alarmado com o caos no aeroporto de Lisboa, péssimo cartão de visita, péssimo para o turismo. Esse alarme aparece-me entre posts em que amigos partilham o cais do metro de Lisboa a abarrotar, as ruas de Lisboa cheias de lixo, antigas papelarias-livrarias-mercearias que agora são não-sei-quê-gourmet e hordas de despejados de Lisboa à procura de um tecto, sabe-se lá onde.
Não é por acaso que a Linha de Sintra cresce, e muito mais crescerá, à medida que Lisboa expulsar mais umas dezenas de milhares. Sim, senhor presidente da câmara de Lisboa, está tudo ligado. O alarme no aeroporto. O cais do metro. Os despejos em Lisboa. A densidade na Linha de Sintra.
O Porto e outras cidades que me desculpem centrar a conversa na zona metropolitana de Lisboa, sei que quanto a despejos temos todo um rol na Invicta e não só. Apenas a escala na região de Lisboa é mais dramática, e é a que conheço mais. Vai para um ano que deixei de ser residente, eleitora e contribuinte na cidade em que nasci e onde morei grande parte da vida. Nunca esquecendo que Lisboa não é, nem será, do que lhe tem acontecido. Tal como não deixa de ser de cada um de nós, os que a amam apesar de tudo e para sempre, ainda que na diáspora.
7. Era bom não chegarmos ao ponto em que a diáspora lisboeta comece a decorar coisas de Lisboa como no “Fahrenheit 451” as pessoas decoravam livros antes de eles serem queimados. Mas a verdade é que já estamos aí. Multiplicam-se as Lisboas clandestinas. Lisboa é mais do que nunca uma cidade imaginária. Mil cidades.
A propósito de ficção científica, no “Star Trek” havia o teletransporte. Quem sabe, será esse o plano nacional para o aeroporto, o metro, os comboios, os carros no IC19. Mais um esforço, e a habitação resolve-se com umas colónias no espaço.
Comentários