Os tempos avançam, mas a ladainha é a mesma. Em sectores como a Saúde, onde a pletora de organismos é significativa, a ocorrência deste fenómeno é recorrente. Obviamente que entre todos os “puros”, que depressa apontam o dedo à imoralidade das nomeações, também há um número significativo de agentes do sistema que cá andam há muito tempo e que, por experiência própria, sabem que estas são as regras do jogo. Ainda que possam discordar das mesmas. Mas é o que há cá. É o que temos. E se calhar, até há razões para ser assim.

Senão, vejamos:

No Ministério da Saúde temos três organismos do foro da administração direta, sete organismos do foro da administração indireta (já desconsiderando as antigas administrações regionais de saúde) e 43 do setor público empresarial. Portanto, numa análise simplista do universo de nomeações, poderemos dizer que existem cerca de 265 cargos passíveis de nomeação, não obstante as mudanças que se procuraram introduzir com a criação da CRESAP (mas que sucessivos governos têm sido hábeis em manobrar).

A pergunta que se impõe é: mas faz sentido que as nomeações tenham carácter de confiança política?

Ora, em junho de 2024 o primeiro-ministro afirmava que o objetivo do pacote de medidas de combate à corrupção era dar capacidade operacional para aproveitar os instrumentos legislativos que já existiam, sendo que o foco principal estaria em obter maior eficácia na prevenção, na repressão e na celeridade com que a justiça funciona.

Já em fevereiro de 2025 o governo apresenta um pacote de 32 medidas para combater a corrupção, destacando a “perda de bens e proventos económicos a favor do Estado” nos casos de corrupção, mesmo sem uma condenação definitiva em Tribunal, como a mais emblemática das medidas. Todavia, ainda estará em estudo a forma definitiva como o Governo pretende operacionalizar a medida.

Mas, qual a relação do combate à fraude e à corrupção com as nomeações no âmbito do Ministério da Saúde?

Com um orçamento de cerca de 16.000.000.000 € para 2025, há muito dinheiro em jogo na área da Saúde. Além dos gastos fixos, entre os quais com pessoal, há muito dinheiro para aquisição de bens e serviços. Perante um cenário destes impõe-se a existência de mecanismos de combate à fraude e corrupção que cubra todos os níveis de decisão (e os fatores de modelação das decisões, na medida em que estas são, não raras vezes, condicionadas por factos e circunstâncias que fogem ao controlo dos decisores que têm a responsabilidade de afetar os recursos públicos).

De pouco servirá ter o melhor modelo jurídico do mundo de combate à fraude e corrupção se quem está no terreno a tomar as decisões e a monitorizar o seu cumprimento não estiver alinhado com a filosofia de combate à fraude e à corrupção. Ou alinhado com os objetivos estratégicos da respetiva tutela.

Daqui resulta a necessidade de ter nos conselhos de administração e conselhos diretivos dos diferentes organismos “olhos” e “ouvidos” que se inteirem dos procedimentos em vigor e detetem desvios às orientações em vigor. 

A verdade é que os processos de decisão e procedimentos burocráticos conexos são complexos, ao que acresce tecnologias e processos inadequados (ultrapassados, mesmo) para produzir a evidência sobre a qual impendem as decisões tomadas. Sem esquecer as burocracias profissionais, que imprimem na deteção de necessidades as suas próprias estratégias e necessidades. 

Porém…

Tudo o que escrevi pode ser lido em sentido contrário. Em vez de termos agentes com a confiança política da tutela para garantir o cumprimento de orientações, como o combate à fraude e corrupção, podemos ter agentes imbuídos da função de promover dinâmicas contrárias ao interesse público. 

Dir-me-ão que caso isso aconteça o escrutínio público resultará em denúncia e investigação de tais práticas. E que as variáveis em jogo em tais práticas são tantas e de controlo tão difícil que dificilmente alguém se atreveria a instituir tais esquemas. 

O problema neste tipo de reflexão é que estamos a pensar na fraude e corrupção para ganhos a curto prazo, como seja na atribuição de contratos de prestação de bens e serviços. Mas essa é mais fácil de detetar, pois assenta em ativos tangíveis e cronologias pouco dilatadas no tempo. Torna-se mais complicada quando os ativos são intangíveis. Por exemplo: promoção de determinados indivíduos em círculos de poder que lhes possibilitarão ter contacto com oportunidades que de outra forma não teriam (os famosos facilitadores); criação de regras no ecossistema da Saúde que o condicionam à aquisição de bens e serviços que poucas empresas no país ou no mundo disponibilizam; redesenho do sistema de saúde de forma a torná-lo propício à segmentação das prestações e captura por interesses privados no longo prazo (ou o colapso em determinadas áreas geográficas para tornar a sua concessão a operadores privados uma realidade intransponível no longo prazo); reformulação dos processos de funcionamento e consequente produção e tratamento de dados, de forma a facilitar a produção de informação e conhecimento pelos fornecedores de sistemas de informação (sendo que antes se descapitalizou os recursos internos do sistema de saúde nesta matéria).

O dilema nestas reflexões sobre nomeações e nomeados é que continuamos a ser iludidos por quem quer fazer deste assunto o principal problema. Não é. Mais do que discutirmos os mecanismos de nomeação e o perfil dos nomeados devíamos estar a discutir o modelo de governação do sistema de saúde. De que forma os dados são produzidos, tratados e processados. Que tipo de decisões são tomadas em função desses dados. De que forma as decisões respeitam o interesse público e as regras instituídas. De que forma é concretizada a monitorização e avaliação do resultado das decisões. Quais as consequências dessa avaliação. Em suma, de que forma é realizada a governação e a governança do sistema de saúde, começando por questões tão simples quanto os níveis de transparência, de prestação de contas, de envolvimento das partes interessadas e de eficiência do sistema. Sobre esta matéria será interessante o leitor consultar a página e analisar quantas unidades locais de saúde têm os seus instrumentos de gestão e de qualidade mais atuais publicados (ou se têm sequer algum publicado!).

Devíamos discutir as políticas de saúde e não cargos. E muito menos cargos que foram desenhados para pessoas concretas. A definição de regras e a construção do edificado jurídico do Estado devem ter um carácter imparcial, neutro e de estabilidade temporal. Os cargos e os “encarregados” devem ter um carácter instrumental na concretização das políticas.

Ainda assim, poderia existir uma grande utilidade para os comissários políticos nas organizações de saúde. Da qual, infelizmente, não fazem uso. Essa utilidade seria reformular processos. 

Qualquer pessoa que reflita um pouco sobre o nosso sistema de saúde e sobre o Serviço Nacional de Saúde em particular deteta rapidamente a assustadora quantidade de ineficiências que existem. Mais difícil fica, porém, entender as razões da sua existência. Dois exemplos (meramente ilustrativos):

  1. Um utente dá entrada no serviço de urgência de um hospital central. É avaliado pela especialidade indicada, que decide por uma intervenção cirúrgica urgente. É enviado para o bloco operatório e é operado. Quem o opera, mesmo estando no seu horário de trabalho normal e a ser pago como tal, recebe pela cirurgia realizada como trabalho adicional (trabalho feito fora do seu horário de trabalho normal). Porque é que a situação não é detetada? Porque os sistemas de informação da urgência, do bloco operatório, do pagamento adicional e do registo de assiduidade dos trabalhadores da organização são distintos e não cruzam informação.
  2. Um utente é “utilizador assíduo” do serviço de urgência. Quem trabalha na instituição conhece-o “de ginjeira”. Os prestadores de serviço da urgência não. Muitas vezes apenas precisa de fazer uma terapêutica concreta para a sua situação crónica (perfeitamente documentada). Porque é que tem de ser visto por um médico (tinha sido visto há 4 dias naquele mesmo sítio), ocupando assim uma vaga e contribuindo para aumentar o número de horas de espera para aqueles que estarão numa situação mais necessitada? Que processos deveriam estar instituídos para que isto não acontecesse, mas não estão? 

Há uma realidade que mais cedo ou mais tarde vamos ter de falar em Portugal: a ineficiência dos processos assistenciais. Soluções simples? Não as há. Mas se conseguíssemos debater políticas e não politiquices e seguidamente termos agentes no terreno alinhados com as políticas delineadas e sufragadas pelo povo, provavelmente evitaríamos o colapso financeiro, que se adivinha no horizonte, do Serviço Nacional de Saúde.