John Le Carré, escritor essencial para entendermos o funcionamento político-diplomático do mundo, não apenas no tempo da Guerra Fria, indignado com a perspetiva de Brexit, comenta que “é a maior idiotice perpetrada pelo Reino Unido”. No entanto, a menos que na próxima quinta-feira o voto tático tenha um improvável crescimento exponencial, o Reino Unido vai mesmo sair da União Europeia já no final do mês que vem. E, provavelmente, entrar num processo de desunião do reino.
As sondagens sobre o voto britânico falharam o resultado em todas as últimas votações. Não previram a vitória do Brexit no referendo de 2016, nem que David Cameron conseguiria a maioria absoluta em 2015, nem que Theresa May a perderia em 2017.
Para as eleições gerais da próxima quinta-feira no Reino Unido há previsões de pelo menos 10 institutos de sondagem e, desta vez, há grande coincidência no quadro de resultados: todos dão vitória aos conservadores de Boris Johnson, com 39 a 44% dos votos, seguidos pelos trabalhistas de Jeremy Corbyn, com 31 a 35%. Na terceira posição em percentagem estão os liberal democratas, de Jo Swinson, com 11 a 15%; depois, tanto os Verdes como o Partido Nacionalista Escocês (SNP), ambos com 3 a 5% dos votos.
Nada está garantido e várias surpresas podem chegar
Parece fora de questão que os conservadores vão ser o partido mais votado. Boris Johnson precisa desesperadamente de conseguir maioria absoluta de lugares no parlamento britânico. O cenário mais provável dá-lhe maioria folgada, talvez mesmo uma bancada conservadora com 60 deputados para além da maioria absoluta. Mas nada está ainda garantido e há várias possibilidades de surpresas.
Os peritos em resultados eleitorais britânicos estimam que a maioria absoluta é conseguida se o partido mais votado tiver seis pontos percentuais de avanço sobre o segundo classificado. Ora as sondagens apontam para vitória conservadora com uma vantagem que pode chegar aos 13 pontos percentuais, mas também pode ficar apenas pelos quatro. Tem sido muito sugerida uma distância de 10 pontos percentuais.
No entanto, o sistema eleitoral britânico, por ser uninominal, em vez do proporcional utilizado em Portugal e em vários outros países europeus, leva a que as percentagens globais sejam enganadoras em relação ao número de eleitos.
Convém ter em conta o que parecem aberrações na relação, no sistema britânico, entre percentagem de votos e número de eleitos.
O Partido Liberal Democrata, com votação prevista entre os 11 e os 15%, tem previsão de eleição de apenas 13 deputados; os nacionalistas-escoceses do SNP, com magros 3% do voto no Reino Unido tem a previsão de eleição de 43 deputados. Ainda maior distorção na relação entre Verdes e SNP, ambos com a promessa de 3% do total de votos: o SNP tem a já referida estimativa de 43 deputados, enquanto os Verdes, com a mesma percentagem, têm anunciado um só deputado.
Porquê estas diferenças?
O sistema eleitoral britânico, uninominal, divide o país em 650 circunscrições. Em cada circunscrição é eleito apenas um deputado, naturalmente o mais votado. Por absurdo, poderia acontecer um partido ficar sempre a um voto do vencedor em cada circunscrição e, no final, o partido ganhador ficaria com o total dos 650 deputados e o segundo classificado não teria qualquer eleito. Nunca aconteceu um cenário assim extravagante, mas a falta de proporcionalidade é constante.
Este modelo uninominal tende a favorecer o partido mais consensual, robustecendo-lhe a maioria absoluta. Boris Johnson conta com esse cenário. Mas pode vir a ser surpreendido por uma excecional quantidade de voto tático.
Há muitas questões em jogo nestas eleições, do serviço público de saúde (National Health Service, NHS) às questões da segurança, do clima às migrações.
Desta vez, há um tema dramático: o Brexit
Como o triunfo dos conservadores de Johnson com maioria absoluta significa divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia já em 31 de janeiro próximo, a metade da cidadania britânica que tenta tudo por tudo evitar esse divórcio, tende a optar pelo voto tático para tentar retirar lugares aos conservadores, portanto ao Brexit.
É assim que eleitores trabalhistas se dispõem a votar na candidatura liberal democrata onde esta parecer melhor colocada para suplantar a candidatura conservadora, sendo que liberal democratas, verdes e outros “remainers” [defensores da permanência do Reino Unido na União Europeia] poderão votar trabalhista, mesmo que não gostem do candidato, porque há um interesse maior a defender: o de travar o Brexit.
Este desejo também pode concorrer para fortalecer o número de eleitos pelo SNP. A Escócia coloca 59 deputados no parlamento britânico, e as sondagens apontam a tendência para maior representação de sempre do “remainer” SNP, com 43 deputados.
Há uma outra particularidade no sistema político britânico: só pode ser chefe do governo uma personalidade que esteja eleita para o parlamento. Ora, na circunscrição onde Boris Johnson se apresenta, Uxbridge, com muitos jovens hiperativos contra o Brexit, está a ser detetada uma forte mobilização para barrar a eleição de Johnson. É improvável que a frente de oposição aos conservadores consiga o triunfo, mas a possibilidade não é de excluir.
Portanto, em vésperas das eleições gerais, o cenário dominante aponta para o triunfo dos conservadores de Boris Johnson, com maioria absoluta e, portanto, logo a seguir, Brexit. Mas ainda estão abertos todos os cenários, aliás com sinais de muita mobilização do campo anti-Brexit que tem nesta eleição a última oportunidade.
Se Boris Johnson triunfar, abrem-se a seguir várias sérias questões, seja sobre o relacionamento entre Reino Unido e União Europeia, em todos os domínios, seja sobre a própria unidade do Reino Unido. Sobre esta questão, vale voltarmos à entrevista do El País com John Le Carré citada no início desta análise: se o Brexit avançar, a questão da Irlanda do Norte volta a rebentar (John Le Carré fala de traição à Irlanda do Norte) e na Escócia vai disparar a reivindicação de novo referendo sobre a independência.
O voto britânico desta quinta-feira envolve decisões que podem trazer extraordinárias transformações e turbulências.
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