Há um sobressalto de temores a varrer as pessoas de matriz conservadora que antes se reviam no Partido Republicano: é o receio de que o repúdio pela personagem “The Donald” produza efeito de contágio sobre os candidatos republicanos à Câmara dos Representantes e ao Senado, propiciando assim a Hillary a possibilidade de poder absoluto que nem Obama nem Bill Clinton conseguiram.
A presidência democrata pode vislumbrar livrar-se das muralhas republicanas que tanto bloquearam os antecessores. O efeito “The Donald” pode gerar um tal cataclismo político que deixe Hillary com as mãos completamente livres para executar a sua política e entregar pela primeira vez a uma maioria progressista o destino da nação americana. Embora o mais provável seja os democratas juntarem à presidência o controlo do Senado e os republicanos manterem maioria, embora reduzida, na Câmara dos Representantes.
Atualmente os republicanos têm uma maioria de 30 lugares entre os representantes e de oito lugares entre os senadores. A maior parte dos republicanos que recusa votar numa criatura imprópria como Trump também não vai querer votar ao lado de Hillary. Mas a abstenção pode vir a ser fatal para o Grand Old Party republicano, ameaçado de implosão. A poderosa direita religiosa está furiosa com as posições de Trump e com a omissão nos debates de temas que há muito tempo dominam a linha dura conservadora, como por exemplo a questão do aborto.
Esta envenenada campanha eleitoral americana passou ao lado das grandes questões para dar prioridade às baixezas. Já passaram dois dos três debates entre os aspirantes e pouco ou nada de concreto se ouviu discutir sobre programas de desenvolvimento e de criação de emprego, sobre segurança social e combate à pobreza, sobre acesso à saúde e à educação, sobre as alterações climáticas e as outras questões ambientais, sobre as relações com esta Europa tão desunida e com os países árabes, alguns dos quais financiam mais ou menos ocultamente os fundamentalistas islâmicos que dão fogo ao terrorismo. Também não falaram sobre como vão lidar com os fundos chineses e árabes em cujas mãos está muito da enorme dívida americana. A democracia sai perdedora desta campanha tabloide.
Putin tem sido uma figura recorrente nesta campanha americana. Hillary promete desafia-lo e voltar a meter o urso russo dentro da toca. Trump fala de um novo relacionamento com Moscovo, sem prova de força. É uma discussão que mexe com esta debilitada Europa em que estamos.
Trump é grotesco, é petulante, é grosseiro, é misógino, é paranoico, é intolerante, é xenófobo, é rancoroso. Tem todos estes males e outros mais como Robert de Niro enunciou, mesmo assim vai ter muitos votos. Há uma grande massa de desesperados e de revoltados com o sistema que tem comandado o destino dos americanos. Mas dentro da América profunda que foi o trampolim de Trump nas primárias também já está a aparecer uma rebelião contra aquele que parecia ser o seu líder natural. Isso aparece muito na imprensa local que tradicionalmente declarava apoio ao candidato republicano e que desta vez se volta para o lado de Hillary Clinton. Mesmo assim, muitos dos flagelados pelas crises, apavorados com a insegurança e a violência urbana, muitos dos que temem perder algum direito para os imigrantes, continuarão a votar Trump. É para eles, para os que têm ódio pelo establishment que “The Donald” anda a falar. Decerto não está a conquistar um voto que seja fora da sua base de fiéis. Quantos serão? 40% dos eleitores? Esse peso populista e de desiludidos e revoltados com a política poderá chegar aos 45%? No segundo dos três debates foi evidente que a tática de Trump foi a de tentar segurar o seu eleitorado, evitar que a deserção das elites avance também pelas bases.
Hillary vai conseguindo passar a intenção de promover um programa assente na “justiça económica”, possível base de um novo sistema de welfare. Esta campanha poderia ser fértil de estimulante discussão política, mas ficou pela baixa vulgaridade.
O destino de Trump está traçado. E o do Partido Republicano? A deriva já vem de trás, irrompeu em 2008 quando a ultra e ignorante Sarah Palin saiu da gelada obscuridade para servir o tea party como parceira de John McCain, um respeitável moderado desconfortado com a escolha que lhe foi imposta. Foi ali que começou esta vaga de estilo rasteiro nas campanhas republicanas. Trump é o protagonista nesta nova temporada. Há algumas diferenças em relação a Palin: ele já era famoso pelos seus shows e conhece as linguagens da televisão em formato tele-realidade. Foi assim que “The Donald” abriu o debate deste domingo com o golpe do anúncio de pretender um procurador para investigar Hillary, ou seja, com a intenção de a meter na cadeia.
É perturbador um frente a frente como o deste domingo. Pela falta de respeito. Pela falta de dignidade. Pelo desdém. Também pela ausência de ideias. Até pelo que não foi dito mas ficou revelado. Quando a política desce a este grau tudo o que é de bem fica a perder. Ficamos todos deprimidos.
É certo que para Trump aproxima-se o game over. As elites do Partido Republicano, desconcertadas com o modo como esta personagem galgou terreno, dedicam-se ao exercício acrobático de tentar salvar o que pode ser salvo, neste caso, sobretudo, a maioria na Câmara dos Representantes. Mas é de prever que um outro populista esteja junto à boca de cena pronto para logo a seguir ocupar o lugar de Trump com o discurso tabloide da raiva e da intriga. Tal como vai aparecendo em vários países europeus.
Também a ter em conta:
Ler a crónica de Ferreira Fernandes é um imprescindível gosto diário. É como um bússola para o roteiro dos dias que vão passando. Não me lembro de alguma vez não me encontrar na visão que nos traz. Também me revejo neste lamento pelos taxistas que se perdem.
A natureza é cruel com o Haiti. São os terramotos, os ciclones, os furacões. É a muita pobreza. O Matthew devastou muito do que estava a ser levantado. Agora é a hora da luta contra a fome e a cólera.
Uma escolha de hoje no SAPO Jornais.
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