A confusão advém-me pela forma abrupta como nos aculturámos: num ano, o S. Valentim era coisa exclusivamente festejada na disciplina de Inglês, no outro seguinte já tomava conta das montras e das obrigações de qualquer namorado. Deve ter sido mais ou menos o que aconteceu com o Halloween na geração que me sucedeu. Por cá, em vez de “xennials” e “millenials”, talvez nos distinguíssemos geracionalmente melhor como “valentiners” e “halloweeners” – da minha idade os românticos, da garotagem seguinte os assustadores.
Como escrevo às quartas e perdi a oportunidade de falar mal do Carnaval, parece sensato vingar-me no 14 de Fevereiro. Encontro neste Dia dos Namorados a auto-estrada desimpedida para acelerações rezingonas. Mas, não vá ser eu multado e acusado de azedumes desapaixonados (pé pesado no acelerador e coração duro na vida) encontro outra forma de imprecar a data: preparo-me para escrever muito sobre o que me diz pouco. Não há melhor desdém do que encarregar-me com a tarefa de fazer sugestões; eu, um indiferente. Lanço, então, as minhas experiências e as minhas propostas, cheias dum veneno que nem chega a ser maldoso, só rezingão.
Flores
A única vez que ofereci flores num dia dos namorados foram flores irónicas a certa não-namorada. Aprendi uma lição sobre ironia naquele dia. Ou, melhor, desaprendi uma lição sobre ironia naquele dia, porque afinal “ironia” não era o que eu pensava. Quando temos 17 anos e nos damos ao trabalho, e à despesa, de comprar flores, é melhor estarmos preparados para que nem toda a gente perceba a piada. Brincadeirinhas que envolvem trabalho e despesas nem sempre são as mais fáceis de entender.
Acabou por não ter muita graça, e a única vez que ofereci flores num dia dos namorados foi a única vez que corei num dia dos namorados. O falhanço deixou-me vermelho - cor do amor eterno, cor contrária à intenção da brincadeira (cá estava afinal a ironia). Já as flores eram amarelas; a minha recomendação para este S. Valentim são flores amarelas: já correram mal uma vez, logo baixou a probabilidade de vos correr mal a vocês. É assim que funciona a matemática, certo? Não têm de quê.
Cartas de Amor
A incomparável Eartha Kitt, uma das criaturas mais excitantes de que há registo, tinha uma frase com muita graça sobre ser-se sexy. Dizia ela qualquer coisa como “não é preciso levar uma pancada na cabeça para ser-se sexy”. A inteligência é apelativa, e a Eartha ajuda-nos a perceber que “o saber não ocupa lugar” nem na cabeça nem no coração. A minha recomendação é, portanto, que os bilhetinhos e cartas amorosos de hoje demonstrem uma qualquer carga de saber, algo que escape à ordinária xaroposidade emotiva. Como? Basta, por exemplo, estarmos atentos a datas e fazemos logo um brilharete.
14 de Fevereiro, para além do S. Valentim, foi também o dia de 1990 em que se aprovou o Projeto de Ortografia Unificada da Língua Portuguesa. Faz então 28 anos desde que demos o pontapé de saída para podermos dar instituídos pontapés na gramática. Não me alongarei no tema pois já tive oportunidade de escrever sobre ele há um ano. Mas, regressando aos valentins, eis mais explícita a minha sugestão: escrever uma carta de amor que, ao longo do texto, contenha todas as palavras esventradas, grudadas ou empaladas pelo novo acordo ortográfico (exemplos: “ação”, “arquiteto”, “receção”, “antirrugas”). Não só isso revelaria aquela inteligência sexy (por serem sabedores de datas e respectivos acontecimentos, caso de 1990/02/14), como ainda apontaria para este romantismo simbólico: estariam a usar um acordo ortográfico que perde consoantes como quem perde a cabeça de amores, ou um acordo que se trespassa por hífenes tão insondáveis quanto as setas de Cupido.
Ah! Hoje também é dia de São Cirilo. Uma carta de amor escrita em alfabeto cirílico terá o mesmo efeito que a recomendação anterior.
Jantar
Podia perfeitamente ser o nome de um restaurante afrodisíaco: o “Hottie”, ali para os lados da Avenida da Liberdade, é afinal um pequeno lugar onde se comem clássicos da cozinha americana. Não é de descartar, contudo, o potencial romântico da ementa. Do que provei, o destaque óbvio vai para o entrecosto. Reconheço que até agora neste texto tenho andado a fornecer recomendações dúbias, mas o entrecosto do Hottie é mesmo (como diriam os próprios americanos) “finger-licking good” – bom de se lamber os dedos.
Contrariando o domínio de expectativas licenciosas no Dia dos Namorados, sugiro o entrecosto do Hottie para uma intimidade como deve ser. Esqueçam a cama e olhem para a mesa– quantas etapas de namoro é que se avançam quando, finalmente, perdemos a timidez perante uma iguaria pegajosa que tem de ser comida sem talheres? Quantos degraus de proximidade subimos quando, no passeio de mãos-dadas a seguir ao jantar, se entrelaçam os dedos de onde há pouco se chupou copiosamente molho barbecue? Esqueçam a cama – a rebaldaria que conta está num entrecosto a cair do osso, e na promenade que se lhe segue.
Cinema
O Dia de S. Valentim é, para muitos casais, também o Dia de S. Auguste e S. Louis Lumière. As pessoas que só sentem necessidade de ir ao cinema a 14 de Fevereiro merecem uma recomendação reconfortante: um filme que as leve a crer que não têm andado a perder nada de jeito. “A Forma da Água” parece-me a aposta ideal por ser popular, um antecipado ganhador de prémios, e ainda assim um título (literalmente) aguado e que deixa um pouco a desejar.
Trata-se possivelmente do pior filme do Guillermo Del Toro que aqui, entre o pretensiosismo e a pouca subtileza das temáticas sociais, fica atrás de obras onde claramente se divertiu mais, e fez divertir mais. Atira-nos logo com nudez e violência para avisar que o filme é sério, e não uma chachada vedada às estatuetas. Depois, copia descaradamente as patetices do Jeunet (quando, dentro do género, haveria um Chaumet tão melhor para se copiar). É artificial na nostalgia (bastava a Del Toro rever o “Wall-E”, para perceber com se pode ser clássico a invocar os clássicos) e denunciado em quase tudo.
“A Forma da Água” é, mesmo assim, muito menos maçador do que a minha maneira de escrever críticas de cinema. A recomendação mantém-se, até porque a personagem principal do filme é uma mulher muda; seguramente não interromperá com diálogos desnecessários o vosso imprescindível mastigar de pipocas.
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