
Durante 10 anos (2015-25) Justin Trudeau ganhou três eleições pelo Partido Liberal, seguindo a política social tradicional do país, mais europeia do que norte-americana (já falo nisso mais adiante). Mas, dois escândalos de corrupção, ainda não resolvidos, levaram Trudeau filho a demitir-se a 6 de janeiro deste ano (já agora, Trudeau pai foi primeiro ministro entre 1968-79 e 1980-84).
Politicamente, Justin era um social-democrata de centro-esquerda e assinou leis como a legalização do canábis, a imposição de uma taxa de carbono e a eutanásia. Em política externa, subscreveu o Acordo Canadá/Estados Unidos/México (comercial) e o Acordo de Paris (climático).
Era um tipo simpático e sorridente, bem aceite pela população e continuou a linha politico-social europeia que sempre tem regido o Canadá - boa Segurança Social, impostos progressivos, aceitação de imigrantes de todas as cores, desde a China à Nigéria. Nos últimos três anos recebeu 1,5 milhões.
Temos então um país com um território gigantesco, cerca de 10 milhões de quilómetros quadrados, maioritariamente coberto com neve permanente, e uma população diminuta para o espaço, 40 milhões de habitantes. Há uma província, o Quebeque, maioritariamente francesa, que de vez em quando diz que quer ser independente, e ainda restam cerca de um milhão de índios, com representação parlamentar e uma espécie de governo próprio. É de salientar que, apesar da coabitação de tantas origens, não há conflitos étnicos de monta. Teoricamente o Canadá ainda reconhece o Rei de Inglaterra, mas, na prática, é uma república parlamentar. Quanto às nacionalidades, em 2021 havia 15,6% de canadianos natos, 14,7% de ingleses, 12,1,1% de irlandeses, 11,1% de escoceses, 11% de franceses, 8,1% de alemães, 4,7% de chineses e 4,3% de italianos. Os portugueses são cerca de 500.000.
O Canadá tem alinhado com os países ocidentais nas duas guerras mundiais e em alguns teatros de guerra criados pelos norte-americanos, como a Coreia, Iraque e Afeganistão. Pertence à NATO, evidentemente.
Ironicamente, os canadianos consideram que ser vizinho dos Estados Unidos é como dormir numa cama estreita com um elefante… Mas as relações eram boas, e até excelentes, desde o século XIX, depois de várias guerras entre norte-americanos, franceses e ingleses. Mas isso já lá vai.
Ora bem, a demissão de Trudeau coincidiu com a tomada de posse de Trump. A situação mudou imediatamente, com Trump a dizer que o Canadá deveria ser o 51º Estado americano e a aumentar substancialmente as taxas de importação. Os EUA são o principal destino da exportações canadianas - aço, petróleo e madeira. Os canadianos, de todas as etnias acima descritas, rejeitam totalmente esta bizarra ideia. Se Trump exigir um referendo (o que não pode fazer, obviamente) perderá a 100%; se optar por uma invasão militar, será combatido com a mesma energia da Ucrânia contra a Rússia.
(Até me sinto um bocado ridículo em escrever estas duas hipóteses dementes, mas hoje já nada é impossível…)
A afirmação de Trump provocou uma das mais rápidas, senão a mais rápida, mudança de sondagens numa eleição em toda a História - “como o mundo nunca viu”, diria o próprio Trump.
O candidato favorito era, até o princípio de janeiro, Pierre Poilievre, do Partido Conservador, parlamentar há 20 anos e dentro do estreito espectro político nacional, o mais à direita. E havia outro candidato, Mark Carney, do Partido Liberal, que insistia em concorrer, contra todas as sondagens, que lhe davam uma média de 4,5% dos votos.
Acontece que Poilievre sempre mostrou simpatia por Trump e fez a campanha num estilo MAGA. O resultado desta postura foi-lhe fatal; não só não ganhou o Governo como perdeu a eleição parlamentar!
E assim Mark Carney, ex-governador do Banco de Inglaterra, foi eleito Primeiro Ministro. O partido Liberal ganhou 168 lugares no Parlamento, o que não lhe dá a maioria absoluta de 172 deputados, mas não terá grandes dificuldades em obtê-la em acordos bilaterais com outro partido, provavelmente o Bloco do Quebeque, com 23 deputados.
A primeira coisa que Carney fez foi convidar o Rei Carlos III para a cerimónia de posse, mostrando assim que valoriza mais as alianças atlânticas do que a parceria com o elefante na cama.
O Canadá vai receber em junho a conferência mundial de líderes, e um dos temas principais é o que fazer com fundos russos de 265 mil milhões de euros que estão congelados à espera que Putin desista da Ucrânia. Carney vai propor que sejam transferidos para um fundo comum e entregues à Ucrânia. Como anfitrião da conferência tem uma influência maior na matéria, podendo contrariar os dois países que se opõem - a Hungria e a Eslováquia.
Apesar de ter recebido cerca de milhão e meio de refugiados ucranianos, o Canadá tem sido acusado de não ajudar o esforço da guerra da Ucrânia. Esta será uma boa oportunidade.
Quanto a Trump, que nem foi convidado para a abertura do Parlamento canadiano, nem Carney disse que quer falar com ele, já deve ter percebido que o Canadá não será mais um Estado para ele reinar.
Com o mundo no estado em que está, Carney tem a possibilidade de dar ao Canadá um protagonismo que nunca teve nem quis ter.
Não há dúvidas que estamos a assistir a uma mudança tectónica no equilíbrio (ou desequilíbrio) da ordem mundial, com novos protagonistas a despontar e velhos protagonistas a perder peso.
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