
A bola a rolar no tapete verde promove um borbulhar cúmplice que vai muito além, e é mais profundo, que a simples camaradagem, afinidade e partilha de momentos entre pais e filhos, avós e netos, irmãos e primos, amigas e amigos, namorados e casais.
O livro “Fever Pitch”, na tradução “Febre no Estádio”, de Nick Hornby, relata com uma simplicidade desarmante esse elo criado, no caso concreto, entre um pai e um filho tendo por base a paixão (quase obsessão) por um clube de futebol (Arsenal FC), uma relação alimentada da infância até à idade adulta.
Pedro Marques e Luís Caixinha conhecem este pedaço de literatura que narra esses laços paternais nascidos e desenvolvidos à volta de uma bola e souberam extrair essa porção mágica e dar a provar a quem lhes sucede no ramo familiar.
Antes e depois de uma partida de futebol, os pais de Santiago (Pedro Marques) e Manuel (Luís Caixinha) reconhecem que partilham com os descendentes horas de glorificação, nas vitórias, dores de frustração e desilusão, nas derrotas, levantam o espírito e redobram a fé depois da queda e dão descanso à voz após as celebrações.
A festa da Taça de Portugal em futebol, em especial, no vale do Jamor, é um dos berços promotores destas relações familiares quase uterinas. Todos os anos, famílias e tribos confluem à “casa” do futebol para torcer pelos seus clubes.
A tarde de verão de 25 de maio não foi exceção. Juntou no grande palco, Sporting, campeão nacional, e Benfica, vice-campeão. Dois rivais eternos que se reencontraram quase 30 anos depois.
Entre o cheiro a grelhados, o fumo dos churrascos, o sabor dos enchidos e dos queijos, o prenúncio dos Santos Populares, pelo meio de pistas de dança improvisadas e cânticos avulso, pais e filhos caminharam no pulmão verde do Complexo Desportivo Nacional do Jamor.
Entre as áreas reservadas, algumas de véspera, à sua cor clubística, partem à procura dos “seus” companheiros de almoço na mata e daqueles, a quem mais tarde, ombro a ombro, partilharão na bancada as emoções da Taça.
Pedro e Santiago Marques, Luís e Manuel Caixinha, não poderiam faltar.
“Em 1996, vim com o meu pai assistir à final da Taça, o Benfica-Sporting”
“Em 1996, vim com o meu pai assistir à final da Taça, o Benfica-Sporting”, disse Pedro Marques, adepto encarnado.
Vestido à civil, faz uma pausa para puxar atrás a fita do tempo e parar no exato instante do último troféu disputado entre os rivais de Lisboa.
Foi um jogo de triste memória devido à morte de um adepto leonino em pleno estádio após o lançamento de um engenho pirotécnico vindo da enorme mancha encarnada que pintava a bancada Sul.
“Estava numa lateral. Vi sair qualquer coisa, um foguete. Não nos apercebemos de nada no estádio. Só conseguimos perceber o que se tinha passado quando chegámos a casa”, recordou.
“Somos benfiquistas ferrenhos, vivíamos na altura no Alentejo, o meu pai era muito de futebol e trazia-me imensas vezes. Quando chegámos a casa, vimos a notícia, o meu pai disse: acabou o futebol”, exclamou.
Recuperou, num tom seco e pesado, aquela fala do dia que viria a marcar a relação entre pai e filho durante os capítulos semanais de 90 minutos de duração.
“Nunca mais me trouxe ao futebol. Na altura, tinha 16 ou 17 anos”, recuou, numa fase da vida que somava 10 anos na companhia do pai, promotor desse ritual de iniciação ao mundo futebolístico.
“Comecei a ir ao futebol aos sete anos”, acrescentou ao retroceder à era das idas ao estádio de mão dada, num caminho da apresentação, para a vida, do emblema que se pretende passe de geração em geração.
“Desde essa final da taça, o meu pai não me proibiu de ir ao futebol, mas disse-me que, a partir daquela data, deixava de ir”, relembrou.
A justificação sai de forma escorreita. “Porque achava, com razão, que o futebol estava a entrar por uma linha que não era aquela que devia ser a sociedade portuguesa”, comunicou.
“O meu pai só voltou ao Estádio (da Luz) três vezes”, tendo visto o Benfica “perder e empatar”, sorriu. “Empatámos no último jogo da temporada”, aditou Pedro Marques, introduzindo o filho Santiago, 13 anos.
“É benfiquista porque sempre foi incentivado a ser benfiquista”
Santiago foi, com naturalidade, iniciado por mão paterna. “É benfiquista porque sempre foi incentivado a ser benfiquista. Mas vamos lá ver. Ele é do clube que quiser. Nunca pressionei para que fosse da cor clubística que sou”, soltou uma sonora gargalhada, sem esconder que a afinidade entre os dois cresce nos campos de futebol.
Santiago apanha a deixa e explicou a escolha. “Já fui do Sporting quando era pequeno, mas sou benfiquista porque comecei a ir aos jogos com o meu pai, comecei a gostar mais e a identificar-me mais com o clube”, detalhou.
“O Manel entrou com dois anos num jogo em que não o queriam deixar entrar”
Há muito Benfica na conversa.
A família de apelido Caixinha “mete o pé” e entra em campo. Luís, pai e Manuel, filho, são do Sporting. As camisolas verdes e brancas denuncia-os, ao contrário das indumentárias despercebidas escolhidas pelos Marques.
“O Manuel entrou com dois anos num jogo em que não o queriam deixar entrar (por causa da idade)”, diz, com ar embeiçado, Luís Caixinha.
Nascido em 1984, já vai na “quarta ou quinta vez” na romaria ao Jamor, enumerou.
“Já tive alegrias e já tive dissabores”, atestou. “Perdemos com a Académica (2011-2012), aquela do Adrien (jogador leonino mas que estava emprestado aos estudantes) e com o Aves (2017-2018)”, identificou. “Também estivemos com o Porto (2023-2024) e no jogo com o Braga (2014-2015), aquela da debandada (adeptos leoninos)”, apontou a duas vitórias.
“No nosso caso, o futebol é (...) onde conseguimos ter uma cumplicidade muito grande”
A conversa desenrola-se à volta de pais e filhos, mas no seu caso em particular, as idas aos estádios começaram a solo e não foi levado pelo pai.
“O meu pai era do Sporting mas nunca viemos ver um jogo. Quando vim estudar para Lisboa, fui morar para perto do Estádio de Alvalade”, avançou este alentejano de nascença.
Mesmo sem o 'empurrão do pai', a paternidade serviu-lhe para cristalizar a ligação umbilical e a afinidade com o filho durante o jogo do 11x11.
“No nosso caso, o futebol é uma coisa onde, para além do râguebi, conseguimos ter uma cumplicidade muito grande”, explica.
“Estivemos em Alvalade no último jogo quando fomos campeões, saímos de casa às três da tarde.... e regressámos às três da manhã, sempre os dois...”, recupera a história da tarde-noite de celebração do bicampeonato.

“Acabámos por ficar juntos”
As famílias Marques e Caixinha subiram a avenida Pierre de Coubertin e entraram juntas no Estádio Nacional.
Detentores de bilhetes corporate, a cada qual esperava uma zona afeta às suas cores. Contudo, tiveram a possibilidade de escolher e ficar lado a lado, sem muros invisíveis a separá-los.
“Tínhamos dois bilhetes para o lado do Sporting e dois bilhetes para o lado do Benfica. Acabámos por ficar juntos”, confessou o Luís Caixinha no final da partida em que os leões conquistaram a 18.ª Taça de Portugal (3-1, após prolongamento) e a sétima dobradinha da história do clube (a última tinha sido em 2000-2001).
Estava feliz e radiante, tal como o filho, no longo dia em que muitos Pedros, Santiagos, Luíses e Manueis, pais e filhos anónimos celebraram o espírito do futebol, da Taça de Portugal e adicionaram mais um pedaço de cumplicidade na peugada familiar.
Uns, de curta idade, tiveram o privilégio de subir à Tribuna de Honra do Estádio Nacional para receber o troféu, embora, muito provavelmente, a memória venha a precisar ser reavivada com auxilio de uma fotografia.
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