
Capítulo 1
O que sabemos sobre Jesus?
A história é escrita a partir de documentos; para usar a definição de Marc Bloch, é «conhecimento por vestígios». Que vestígios deixou Jesus de Nazaré? Como ele próprio nada escreveu, os únicos documentos de que dispomos provêm de terceiros. Acontece que, a partir de 1950, os vestígios em que se baseia a procura do Jesus histórico multiplicaram-se consideravelmente: ao inventário (clássico) dos Evangelhos do Novo Testamento juntaram-se os testemunhos de escritos extra-canónicos, os textos do judaísmo antigo e os achados arqueológicos da Palestina. Os investigadores de hoje não deparam com escassez de vestígios, mas com a sua profusão, com a tarefa de diagnosticar a fiabilidade histórica destes. Mas antes de fazer um inventário dos vestígios e de examinar a sua fiabilidade, convido-o a reflectir sobre a idade dos testemunhos históricos.
Jesus existiu?
No seu livro Decadência: o Declínio do Ocidente, o filósofo Michel Onfray retoma a «teoria mitista»: Jesus não existiu. A história da sua vida foi extraída da mitologia persa e mesopotâmica; a sua morte e ressurreição foram modeladas pelos destinos de Baal, Marduk, Attis, Osíris ou Adónis. Os Evangelhos seriam, portanto, pura ficção, e o cristianismo construído sobre essa impostura.
Esta tese não é nova. Dois filósofos (Volnay e Dupuis) apoiaram-na no final do século XVIII, mas um século mais tarde o seu mais famoso propagandista foi Bruno Bauer, filósofo e teólogo de Berlim (1809-1882). Bauer negou qualquer valor histórico aos Evangelhos e salientou a ausência de qualquer menção a Jesus em escritores não-cristãos do século I. Além disso, acrescenta, o apóstolo Paulo não diz quase nada sobre Jesus, assumindo a sua existência sem nunca a provar. Depois de Bauer ter sido demitido do cargo que ocupava na Universidade de Berlim, em 1839, devido às suas ideias, um dos seus alunos registou os ensinamentos que dele recebera nos seus próprios escritos: Karl Marx. No início do século XX, outro filósofo alemão, Arthur Drews, inspirou Vladimir Ilyich Lenine. Foi assim que o regime soviético difundiu na sua propaganda as teorias de Bauer e Drews sobre a impostura cristã. Nos Estados Unidos, George Wells e Robert Price revitalizaram-nas mais recentemente.
A tese de um Jesus imaginário não pode ser descartada de imediato. É preciso verificá-la e questionar os seus argumentos: é verdade que Jesus só foi mencionado pelos cristãos no século i? A fiabilidade histórica dos Evangelhos pode ser demonstrada? O que é que Paulo sabia sobre Jesus? A arqueologia dá-nos alguma informação? A análise dos primeiros vestígios de Jesus é essencial.
Documentos muito próximos
Os visitantes da Biblioteca John Rylands, em Manchester, podem admirar um fragmento de manuscrito exposto na semiobscuridade.
O seu nome de código: P52. Este pedaço de papiro, escrito em grego em ambos os lados e datado de 125 d. C., contém algumas palavras do Evangelho de João ( Jo 18,31-33.37-38). É o mais antigo manuscrito conhecido do Novo Testamento. A redacção deste Evangelho data dos anos 90-95, porque menciona a exclusão dos cristãos da sinagoga, uma medida que só aparece nos anos 80 ( Jo 9,22; 12,42; 16,2). Isto significa que cerca de trinta anos separam a redacção do Evangelho da sua cópia no manuscrito de Manchester. Um intervalo tão curto entre uma obra e a sua cópia não tem paralelo na Antiguidade. Espalhados entre Paris, Filadélfia, Londres, Glasgow, Dublin e Barcelona, existem 16 papiros (manuscritos de junco) do século III que contêm fragmentos dos Evangelhos. O manuscrito mais antigo, que contém um Evangelho completo ( João), data do ano 200 e está conservado na Biblioteca Bodmer, perto de Genebra. A partir do século IV, o seu número multiplicou-se.
Uma tal abundância de manuscritos e uma tal precocidade são únicas na literatura antiga. Se o compararmos com as obras de Homero (Ilíada e Odisseia), difundidas por todo o mundo grego, o manuscrito completo mais antigo de que dispomos data do século IX d. C., 16 séculos depois de ter sido presumivelmente escrito. O tratado Poética, do filósofo Aristóteles, é conhecido através de três manuscritos antigos, o mais antigo dos quais é uma tradução árabe do texto grego, produzida no século X, 14 séculos depois de Aristóteles o ter escrito. O mesmo se aplica a todos os autores gregos antigos. Acrescentaria que os grandes mestres da tradição israelita, predecessores ou contemporâneos de Jesus (os rabinos Hilel, Shamai, Gamaliel, Aqiba), nos chegam através da Mishná, que foi escrita, no mínimo, no ano 200; a única excepção é o rabino Gamaliel, citado no século I por Flávio Josefo (Autobiografia, 190-191) e no livro dos Actos (Act 5,34). Por outro lado, a vida de Jesus (que morreu em 30) está registada em quatro Evangelhos, escritos entre 65 (Marcos) e 95 ( João). Não possuímos nenhum manuscrito autógrafo dos Evangelhos, mas é o que acontece com todos os textos da Antiguidade: os manuscritos dos autores perdem-se, se é que os próprios autores copiaram o seu texto; a cópia em papiro era um ofício que só os copistas dominavam.
Por conseguinte, sabemos mais sobre Jesus de Nazaré, desde o início da sua vida e de forma abundante, do que de qualquer outra personagem da Antiguidade – com uma excepção. Poderíamos mencionar Júlio César, que escreveu as suas Memórias e de quem o historiador Nicolau de Damasco deu testemunho muito cedo; mas a única pessoa que rivaliza com Jesus em termos de profusão e antiguidade de provas documentais é Alexandre, o Grande, que morreu na Babilónia em 323 a. C. Quatro biografias desta figura fabulosa foram escritas nos vinte anos que se seguiram à sua morte por Calístenes, sobrinho de Aristóteles, Onesícrates, Nearco e Ptolomeu, um dos seus generais. Mais tarde, surgiram outras Vidas de Alexandre.
Contudo, pode objectar-se, o facto de Jesus ser mencionado por autores cristãos não elimina a dúvida sobre a sua existência. Terão os não-cristãos escrito sobre ele?
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