“Velar por ela” é um romance difícil de classificar, porque abarca diversos aspetos da vida real dos seres humanos: a sua relação com a natureza, com a arte, com Deus, se assim se quiser chamar, ou algo superior ao Homem, no fundo “é a condição de ser um ser humano e tentar ser o melhor que se pode ser”, disse o autor francês, de ascendência italiana, em entrevista à agência Lusa.
O autor decidiu situar a história na Itália do início do século XX, começando por apresentar Mimo Vitaliani, um rapaz nascido em França, filho de migrantes italianos de condição muito pobre, que é enviado para Itália, para trabalhar com um tio escultor e alcoólico que o maltrata.
Anormalmente pequeno, característica que lhe granjeia a alcunha de anão, Mimo revela-se incrivelmente talentoso a esculpir pedra, mas é ensombrado pelo tio, que permanentemente lhe abafa o talento, rouba protagonismo e o dinheiro.
Andrea introduz então Viola, uma jovem aristocrata, inteligente, talentosa e determinada, que funciona de contraponto a Mimo, com quem desenvolve uma estranha amizade, feita de encontros no cemitério, e que é responsável por impulsionar o talento do amigo.
Esta rapariga é, afinal de contas, a personagem principal, admite o escritor, que só escolheu Mimo como narrador, para falar de Viola, porque não se atreveria nunca a escrever na primeira pessoa do ponto de vista feminino.
“Viola é uma homenagem a todas as mulheres extremamente brilhantes que me ajudaram ao longo da minha vida e que me carregaram e me trouxeram até onde estou hoje”, revelou.
Embora o romance, em si, não tenha intenção de afirmação feminista, o autor reconhece que as mulheres têm de lutar muito mais do que os homens, ainda hoje, para chegar ao mesmo lugar na sociedade.
“E eu queria prestar homenagem a esse combate, mas não queria falar como uma mulher, não queria escrever como Viola, senti que, de alguma forma, estaria a trair a Viola porque sou um homem, não tenho qualquer experiência íntima do que é ser mulher, por isso, criei o Mimo e coloquei-me no Mimo. O Mimo sou basicamente eu, um tipo, espero, bastante simpático, por vezes um pouco desastrado, mas que está sempre a tentar melhorar e a aperfeiçoar-se, que é educado e impulsionado por esta mulher, e que, em troca, também lhe dá algo”.
Este algo é o “ela” do título, uma estátua que Mimo esculpiu em homenagem a Viola, que guarda até à morte e cujas razões vão sendo desvendadas ao longo do romance.
Aqui também está uma das chaves da escolha de Viola para personagem principal, porque “ela foi a ideia original, ela estava intrinsecamente ligada ao mistério da estátua e a primeira ideia [para o livro] foi a estátua”, contou Jean-Bastiste Andrea.
Tudo começou quando estava a ver “Sílvio e os outros” (2018), um filme de Paolo Sorrentino, que é um dos seus realizadores preferidos, e se confrontou com a imagem de uma estátua de Cristo numa igreja, que o “comoveu muito” e desencadeou uma sucessão de ideias.
“Tive a visão daquela obra de arte tão misteriosa, por isso, o 'gatilho' para a história deste livro, a primeira imagem que tive, a primeira ideia, foi o fim do livro, e passei dez meses a descobrir como escrever a história ao contrário e como chegar ao fim, como chegar às páginas finais onde a revelação acontece”.
Partir de um filme para um romance não soa tão estranho se se souber que Jean-Baptiste Andrea, de 53 anos, é, antes de tudo, argumentista e realizador, tendo-se iniciado na escrita de romances em 2017, algo que lhe exigiu “muita coragem”, porque “a liberdade absoluta que se tem na literatura, de escrever o que se quiser sobre o que se quiser, é um pouco assustador”.
Para o escritor, o que o cinema e a literatura têm em comum é a arte de contar histórias, mas depois de 20 anos a escrever como argumentista, sentiu que tinha ganhado asas, mas que não conseguia voar, porque no cinema “tudo tem um custo”.
“Cada ideia tem um custo, porque vai ter de ser traduzida numa imagem, por isso, acabamos quase por nos censurar ou por tentar perceber o que é que as pessoas querem, o que é que querem ver, em que é que os produtores gostariam de investir, e eu não queria continuar a ter esses limites”, recordou o escritor que só aos 46 anos sentiu que estava preparado, quando lançou o seu primeiro romance, “Ma Reine”, que ganhou vários prémios.
Hoje assume a “cem por cento” a sua preferência pelo papel de romancista, porque a pressão, o dinheiro, o que os outros esperam, torna muito difícil crescer na indústria cinematográfica, ao passo que a escrita de romances “é assustadora, mas é libertadora”.
Apesar de não renegar minimamente o seu passado cinematográfico – “tive 20 anos fantásticos no mundo do cinema” – Jean-Baptiste Andrea faz a seguinte comparação: “É como tocar banjo na rua e gostar de tocar música. E depois é como tocar a música mais fantástica numa grande orquestra, e é mais técnica e mais livre”.
Também a escolha do país em que ambientou a história está ligada ao seu passado. A avó foi de Itália para França nos anos 1920 e, como a maioria dos imigrantes da zona mediterrânica, trabalhou arduamente para apagar as suas origens, porque era confrontada com problemas de racismo, conta.
Jean-Baptiste Andrea desenvolveu então “um fascínio por esse país”, admitindo que cresceu com a fantasia de ser italiano, o que, na impossibilidade real, concretizou escrevendo um livro situado em Itália.
Já a opção por um dos períodos mais negros da História italiana – a ascensão ao poder de Mussolini e a afirmação da ideologia fascista – prende-se com o facto de o livro falar sobre tirania, sobre “lutar contra a tirania, heróis que encontram em si próprios a força para lutar através de vários meios: arte, realização pessoal, nunca desistir, ser melhor do que esta tirania e os tiranos contra os quais lutam”.
O paralelismo com a atualidade torna-se inevitável e Jean-Baptiste Andrea conta que à medida que ia escrevendo e montando a história (que começa em 1916), e quanto mais passava por essa época, mais pensava: “Meu Deus, isto não é assim tão diferente do que se passa hoje em dia. Tudo se passa há 100 anos e, no entanto, soa muito atual e contemporâneo”.
“Por um lado, é preocupante, porque vemos alguns mecanismos que estão a acontecer agora e que já aconteceram antes, mas por outro lado, se estudarmos o que aconteceu, também podemos ver que muitas coisas terríveis aconteceram porque pessoas que, como nós, tinham o poder de as impedir, não fizeram nada”, alerta o escritor.
Foi por isso que a Marcha sobre Roma foi “realmente bem-sucedida, porque todos se acobardaram, e não se tratava de um exército poderoso e bem equipado, era um bando de idiotas com ancinhos e forquilhas, que podiam facilmente ter sido detidos”.
“Mas na altura o rei, por qualquer razão, passou-se e deixou-os passar, e o Mussolini, um homem que era absolutamente baixo, de repente viu-se a si próprio chefe de Estado. Portanto, por um lado, é preocupante porque se vê que isso pode acontecer, por outro lado, também se pode pensar que não é preciso assim tanto para o travar”, considera.
O papel central que a arte ocupa no livro, servindo de fio condutor entre as personagens e todo o enredo, está intimamente ligado ao peso que a arte tem, na perspetiva do autor, na própria vida.
“Acho que a arte nos liga a algo maior do que nós, e eu não ponho um nome nisso, porque não tenho nenhuma religião, não estou ligado a nenhum sistema de crenças, mas sou bastante espiritual e gosto dessa ideia de que a arte, de alguma forma, me faz quase tocar nisso”, confessou o escritor.
E concretiza a ideia: “Quando estou perante uma grande obra de arte mundial, pergunto-me: como é que a humanidade chegou lá? Como é que um homem foi capaz de fazer isso? Quer dizer, eu percebo porque é que inventámos foguetões, aviões ou armas, coisas boas ou coisas más que nos ajudam a lutar, arranjar comida, ser superior. Mas a arte, não tem um objetivo aqui nesta Terra, não tem um objetivo direto, por isso, para mim, a arte é uma ligação, uma porta de entrada para outro mundo”.
“Velar por ela” é o quarto romance de Jean-Baptiste Andrea e foi publicado em Portugal pela Porto Editora.
*Ana Leiria, da agência Lusa
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