“Os 100 anos é Deus os que dá e eu tenho o que Deus me dá. A alguns dá 100, a outros dá mais ou menos. Não fiz nada para ter 100 anos, só fiz o que faz toda a gente e vou vivendo o tempo que Deus vai dando, mais nada”, conta numa entrevista à Lusa.
Está sentado, ao lado da pequena capela do Centro Juvenil Padre António Vieira, em Díli, num banco castanho de madeira algo desgastado, o cabelo curto e fino e do mesmo branco da barba e da batina até aos pés, tapados com sapatos beges claros, quase da cor da pele.
Para perceber melhor as perguntas, faz conchas nos ouvidos com as mãos, finas e mirradas, marcadas com sulcos de uma vida carregada de muitos momentos difíceis, especialmente os 24 anos que durou a ocupação indonésia de Timor-Leste e em que viu muita morte e sofrimento.
Sempre presente, apesar da fragilidade física que aparenta – em contraste com a firmeza das convicções que vinca nas palavras pausadas – está a intensidade, a vivacidade e a paz dos olhos azuis por trás das lentes transparentes dos óculos de aros finos e dourados.
Natural de Caldas das Taipas, concelho de Guimarães, é o mais novo de oito irmãos, três rapazes e cinco raparigas: “somos dois padres e quatro religiosas, uma família de missionários”.
“Sinto-me português e timorense. Vim para aqui como missionário para trabalhar, enquanto a Companhia de Jesus quisesse e assim foi até agora. Todos contribuímos. O passado foi vivido, e estou contente de ter vivido em paz, não fiz nada contra ninguém, nada de mal contra o povo e estou contente poder ter contribuído alguma coisa”, explica.
Felgueiras foi um educador que dedicou mais de metade da sua vida a Timor-Leste e aos timorenses, vivendo até hoje, na alma, todas as lutas da população.
Em maio de 2016, quando o então chefe de Estado Taur Matan Ruak condecorou o padre Felgueiras com a Insígnia da Ordem de Timor-Leste, lembrou a sua dedicação como “educador infatigável de sucessivas gerações de timorenses, e na preservação da nossa identidade nacional e promoção do desenvolvimento cultural do país".
Antes, em 2002, foi condecorado como Grande Oficial da Ordem da Liberdade, pelo então Presidente português, Jorge Sampaio, em reconhecimento da sua luta pela preservação da língua portuguesa em Timor-Leste.
A educação, e a educação em língua portuguesa, foram os grandes motes da vida de João Felgueiras que hoje ainda fala com brilho nos olhos do seu maior projeto, a Escola dos Amigos de Jesus.
“Nunca pensei que ia ficar aqui estes anos todos”, frisa, recordando os momentos do passado, de violência, em que os timorenses “desciam das montanhas e eram abatidos como bonecos”.
“Aquilo causou-me muita impressão. Não é este o caminho para Timor. Temos que ajudar os timorenses a serem amigos uns dos outros, não adversários para abater a tiro.
Olha para o futuro com otimismo e, questionado sobre as dificuldades e desafios que ainda persistem, saúda o que tem sido feito.
“Problemas dramáticos há em toda a parte, olha agora nos nossos dias o que está a acontecer na Ucrânia, o que acontece na África ou noutros sítios. Aqui temos casas, estradas, edifícios. Estou contente com o que vejo em Timor, desde a fronteira até Tutuala, vejo um progresso grande”, afirmou.
“Não estou desiludido. Cada um faz o que pode e acho que os timorenses com o que podem têm feito. As escolas têm trabalhado muito”, disse.
Mesmo nos tempos mais duros, quando ensinar português era proibido, João Felgueiras dedicou-se ao ensino da língua, escondido e na clandestinidade, sempre com o sonho de ver nascer uma escola.
Finalmente, em 2017, viu nascer esse projeto, a ampliação da Escola Amigos de Jesus, projeto de vida do jesuíta que vive há 52 anos em Timor-Leste e que ensinou português na clandestinidade.
No dia da inauguração, a 04 de fevereiro de 2017, João Felgueiras falava do sonho que se concretizava, mas cuja primeira pedra tinha começado a ser construída muito antes, fruto da atividade pastoral dos padres jesuítas durante a ocupação indonésia.
“A escola tem sido feita com muita dedicação. Queremos que seja um farol, mas também que os que trabalham ali sejam conscientes de que estão numa missão. E estou contente com os professores, os pais, os alunos, creio que estamos a dar um exemplo, um testemunho para o futuro de Timor”, refere.
Anos antes, em maio de 1999, João Felgueiras já falava, apaixonado, sobre a sua terra, e a versão inicial da ‘escola’ era uma casa e algumas árvores onde algumas centenas de timorenses aprendiam português, meio às escondidas.
Na altura, o padre Felgueiras recordava que houve períodos em que falar português em Timor-Leste representava quase uma condenação imediata: “Nos primeiros anos houve muitos timorenses que foram perseguidos e maltratados por terem livros em português. Houve alguns que morreram apenas porque usavam a língua portuguesa”, contou na altura.
Diz-se motivado pelos “bons exemplos”, que teve em casa, na família, na escola e na Companhia de Jesus: “como que um jardim sempre a acompanhar-me de valores, que me ajudaram muito a transmitir esses valores aos outros”.
Há alguns meses perdeu o seu maior amigo em Timor-Leste, o também jesuíta Padre José Martins de quem hoje, diz, sente grandes saudades.
“Era um grande amigo que tínhamos cá. A vida é assim. tenho pena e uma saudade muito grande. Tenho lá a fotografia dele ao pé das dos meus irmãos. Um amigo desde o princípio, que viveu todos os problemas ao meu lado”, disse.
“Este azulejo trouxe-o ele da terra dele, em Barcelos”, diz apontado um mural com a imagem de N. Srª de Fátima, na entrada da capela, recordando depois Rui Marques, que iniciou o projeto do Centro Juvenil Padre António Vieira.
Pausa , olha em volta e sorri. “Temos aqui amigos, nestas paredes há sinais de amizade de grandes amigos”.
Comentários