Foi no seu escritório na cidade do samba, no centro da cidade brasileira do Rio de Janeiro, que Fernando Horta, nascido na cidade nortenha da Lixa, como tão orgulhosamente faz questão de sublinhar, recebeu a Lusa e anunciou que este será um dos seus últimos anos à frente da Unidos da Tijuca, uma das mais antigas escolas de samba carioca.
Após cerca de 30 anos a presidir a tradicional escola de samba, que foi fundada em 1931, no morro do Borel, o empresário português prepara-se para passar o testemunho, lamentando não ter tido o apoio do seu país natal na criação de um enredo dedicado aos 500 anos da viagem circum-navegação do também lusitano Fernão de Magalhães.
"Queria ter feito um enredo carnavalesco inspirado nos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Ainda conversei com alguém em Portugal, mas não chegamos a um acordo, até porque acho que eles não têm noção do que isto representa, porque o carnaval do Rio de Janeiro é transmitido em cerca de 160 países. Acho que andaram a gastar verbas em coisas que estão a passar totalmente despercebidas. Ficaram só pela ambição, mostrando falta de conhecimento, mas é vida que segue", criticou Fernando Horta, sem mencionar nomes.
Contudo, o português de 67 anos, que chegou ao Brasil ainda criança, em 1965, não desistiu de levar uma vez mais Portugal ao icónico sambódromo da Marquês de Sapucaí, apesar de garantir os temas lusitanos não são devidamente "acarinhados" pelo público brasileiro.
"Já fizemos uns sete ou oito enredos ligados totalmente a Portugal mas depois comecei a sentir falta de carinho e tive de começar a partir para outros temas, mas penso ainda fazer um tema português antes de sair da escola.(...) Tenho muita vontade de fazer algo ligado ao Douro, aos vinhos do Porto, à sua origem, porque é uma história muito bonita, e eu tenho esse enredo já todo programado. Quem sabe se ainda não pego nisso na minha despedida", indicou Fernando Horta.
"Por vezes temos muito interesse num tema, mas (...) somos obrigados a deixá-lo de lado, devido à falta de financiamento. Não quero dizer com isso que aceitamos qualquer coisa", sustentou.
Horta assegurou que já recebeu várias propostas de "países árabes", que lhe ofereceram verbas que dariam "para fazer o carnaval tranquilamente", mas o empresário não se deixa iludir, garantindo que não pode fugir nunca das raízes culturais que proporcionem "uma boa história para contar e uma boa cenografia".
Mas nem só de samba vive a Unidos da Tijuca, e a história da própria escola funde-se com a do empresário português, que a ajudou a crescer, e tornar-se naquilo que é hoje.
Horta confessou que foi um emigrante "privilegiado". Formou-se em belas artes e, posteriormente, em administração, sem nunca deixar de participar em carnavais e pagodes, como referiu.
Mais tarde, abriu uma empresa na Tijuca, no norte do município do Rio de Janeiro, sendo que a maioria dos seus funcionários residiam na comunidade do morro do Borel, onde a escola Unidos da Tijuca tinha a sua sede.
"Sem querer, comecei a ajudar a escola e, quando reparei, já estava dentro, e estamos nessa luta há uns 30 anos. Quando assumi a presidência, a escola quase não existia. Embora seja uma das mais antigas do Brasil, ela nunca teve nenhum patrono, então era uma escola de pouco apelo. Aí, com trabalho e com os anos, a Unidos da Tijuca é hoje uma das maiores escolas do país", indicou o nortenho, advogando que "o difícil agora é manter".
As principais dificuldades enumeradas são as financeiras, queixando-se da falta de apoio por parte do prefeitura do Rio de Janeiro - hoje liderada por Marcelo Crivella –, que lucra "milhões e milhões de reais" através do samba e do carnaval.
A Unidos da Tijuca possui, atualmente, quatro títulos de campeã do carnaval carioca, conquistados nos anos de 1936, 2010, 2012 e 2014, procurando renovar o título uma vez mais este ano, apesar do empresário garantir que a votação nem sempre é justa.
"Vencemos quatro vezes nos últimos anos, mas éramos para ter vencido mais. Por exemplo, em 1999, fizemos um desfile inspirado no Vasco da Gama, tanto no navegador português como no clube brasileiro, e fomos injustiçados nesse ano. Marcaram-nos. Mas faz parte. No que depende do ser humano para dar pontuação, já sabemos como é...mas não desistimos. Quem vai desistir sou eu, que já estou em fim de carreira", disse.
Debaixo de um grande secretismo, como é de resto habitual todos os anos, as quatro mil pessoas que desfilarão pela Unidos da Tijuca dão os retoques finais naquela que será uma apresentação sob o tema "Onde Moram os Sonhos", dedicada à arquitetura, tendo em conta o facto de o Rio de Janeiro ter sido escolhido, este ano, como capital mundial da arquitetura.
Num balanço das cerca de três décadas à frente da Unidos da Tijuca, Horta repetiu várias vezes à Lusa que o seu contributo está dado, quer à escola, quer ao centro social que criou, a favor das comunidades.
"A minha marca está aqui e fica para sempre, não por vaidade, mas pelo trabalho realizado. Não só meu, mas da equipa que me acompanhou. É algo muito português, esta determinação, de 'ou faz ou não faz'. Temos a funcionar sete cursos, como música, dança, temos consultório dentário, programas de alfabetização. Temos mais de 40 projetos a funcionar. É um trabalho social muito grande que a escola faz", indicou.
A data de saída foi dada: "Em 2021 teremos eleições, e quem votará são os sócios da escola, e aí eu já não me recandidatarei. Estou fora, está decidido. (....) Agora vamos ver se arranjamos um sucessor à altura para dar continuação a este trabalho", afirmou.
Questionado se sente que foi reconhecido pelo trabalho que prestou ao samba e à comunidade, o português é firme a responder que sim. Contudo, não nega as dificuldades que sentiu no início do projeto.
"O reconhecimento que obtenho é grande. Sabemos que há sempre quem critique, mas, no geral, a aceitação é muito grande, não só na comunidade, mas também no mundo do samba. O reconhecimento é tão grande que já fui condecorado, pelo Governo Federal, com uma das maiores medalhas de comendador, que é da Ordem de Rio Branco", declarou, orgulhosamente.
"Logicamente que não posso dizer que foi uma barreira fácil, porque não foi. Foi tudo muito difícil. Imagina um jovem com 20 e poucos anos, a entrar num mundo destes com aquele sotaque carregado (do norte de Portugal), que ainda tenho. Eles pensavam: ‘este português não entende nada disto’. Mas foi uma demonstração", disse.
Quanto a projetos para o futuro, o português não esconde que eles passam pela terra natal, na Lixa, onde tem negócios como produtor de vinhos, e onde recentemente construiu um hotel, do qual pretende usufruir.
*Por Marta Sofia Moreira, da agência Lusa
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