“É importante sensibilizar as pessoas que não estamos perante mais ou menos abuso por haver contacto físico ou não”, acentuou a especialista em prevenção de abuso sexual das crianças.
A especialista em psicologia desportiva Ana Bispo Ramires destacou o “sentimento de impunidade” por exemplo por parte de quem envia mensagens, “sem se preocupar com o rasto de informação que deixa”, e defendeu a necessidade de fazer as vítimas sentirem-se seguras, mas criar mecanismos que também enviem um aviso claro a quem tem comportamentos abusivos.
Ana Bispo Ramires, coordenadora do Grupo de Atuação em Psicologia e Performance (GAPP), defendeu ser “necessário levar estas situações mais a sério”, acrescentando não ser aceitável existir a noção que não há consequências, quando muitas vezes os episódios acontecem em situações de subordinação hierárquica.
“Se eu souber que há canais de comunicação seguros, onde a minha identidade é protegida, se eu souber que há uma consequência para a minha exposição, eu mais facilmente consigo fazer este movimento. O problema é que, muito frequentemente, quando uma vítima se expõe, pode retraumatizar”, explicou Ana Bispo Ramires.
Rute Agulhas salientou ser fundamental a sensibilização, por ainda haver quem entende que certos comportamentos são abusivos “a partir de um determinado patamar”, o que, “naturalmente, não é verdade” e pode igualmente deixar marcar profundas.
Várias futebolistas que alinharam no Rio Ave em 2020/21 denunciaram, numa notícia publicada na semana passada pelo jornal Público, ações de assédio sexual do então treinador do clube de Vila do Conde, Miguel Afonso, que atualmente orientava o Famalicão, tendo também o diretor desportivo, Samuel Costa, sido alvo de um processo disciplinar.
“O abuso sexual no desporto tem sido, e continua ainda a ser, um tema muito fechado, muito tabu. Não se fala. Eu diria que agora se fala mais, que estamos agora a abrir um bocadinho a caixa de Pandora”, analisou Rute Agulhas, em declarações à Lusa.
A psicóloga alertou para algumas especificidades no contexto do desporto que “contribuem ainda mais para a manutenção do segredo”, como o atleta nem sempre percecionar logo se o toque foi necessário ou adequado para a correção do movimento e quais são os limites.
“Coloca-se muito aqui uma questão que é em que medida é que eu posso vir a ser prejudicado na minha carreira profissional falando sobre isto e, quanto mais subimos, quando chegamos a patamares olímpicos, por exemplo, há muita coisa em jogo, há toda uma carreira, todo um projeto de vida”, enfatizou Rute Agulhas.
Para a especialista, nem sempre é necessário o abusador o verbalizar para se perceber que existe “uma cultura de segredo” e “o receio de deixar de ser convocado, de perder a oportunidade de participar”.
Ana Bispo Ramires lamentou o “frequente ataque às pessoas que fazem este tipo de denúncia, de descredibilização”.
“Muito frequentemente, as vítimas são criticadas por demorarem tanto tempo a fazer a denúncia e isto resulta de dois fatores em particular: porque muito frequentemente só tomamos nota que estivemos envolvidos numa situação de abuso de facto algum tempo depois e também por ausência de literacia emocional”, avalia a especialista.
A coordenadora do GAPP admite que muitas pessoas não sabem que estão a ser vítimas ou a ter atitudes além do aceitável porque há comportamentos de abuso “normalizados e banalizados”, muitas vezes feitos em tom de brincadeira, jocoso ou de gozo, o que “introduz ambivalência na vítima” e a faz questionar-se se o desconforto que sente não será exagerado.
Mas Rute Agulhas é taxativa: “A culpa é de quem agride”, numa alusão ao sentimento de muitas vítimas que, em retrospetiva, “percebem que já tinha havido sinais prévios que, se calhar, desvalorizaram, a que não deram a atenção que deviam e, quando escala, olham para trás e pensam que são culpadas por terem permitido”, como acontece com crianças que acompanha.
A psicóloga, que está a ajudar o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) a formar os guardiões nas estruturas desportivas, vincou que “as estratégias dos agressores por vezes são subtis” e acontece com regularidade o chamado ‘grooming’, comportamentos graduais de sedução, de aproximação, para ganhar a confiança, e mais tarde desenvolvem estratégias para que os atletas mantenham o silêncio.
“Um predador, normalmente, isola as vítimas e faz isso em segredo e, portanto, ninguém sabe, ninguém é testemunha. Normalmente, um predador é muito bom do ponto de vista das relações em termos de competências relacionais, porque é um manipulador e coloca na vítima muito frequentemente questões de ambivalência”, reforçou Ana Bispo Ramires.
A responsável do GAPP mencionou as marcas que ficam, que “variam de acordo com a gravidade e a duração do abuso”, dentro de uma “variabilidade enorme de circunstâncias”.
Possíveis respostas de stress pós-traumático é uma delas, assim como ansiedade, possíveis alterações do estado de humor, do padrão de sono, tristeza, uma postura deprimida, sendo que “as principais consequências são necessariamente a saúde mental, a qualidade de vida e, se a pessoa não estiver bem, vai ter impacto no seu desempenho”.
Para Rute Agulhas, é imperioso começar desde tenra idade a falar sobre fronteiras, sobre o corpo e zonas privadas, o que se pode sentir em caso de desconforto, as emoções e ir abordando o tema sem uma linguagem sexualizada e “sem alarmismos”, trabalhando na prevenção.
Uma via preconizada também por Ana Bispo Ramires, que advogou a penalização não apenas dos abusadores, mas de quem “é conivente” e não levou a sério os sinais, e a implementação de ações de formação para atletas e toda a estrutura envolvente, para “saber reconhecer os sinais” e não passar “além do aceitável”, além de vincar a necessidade de nas escolas e clubes se faça “treino de competências psicoemocionais com os jovens”.
Sobre a denúncia de assédio por parte de figuras públicas, Rute Agulhas entende ser uma forma de encorajar quem viveu situações semelhantes a “quebrar o silêncio”.
Se situações tornadas públicas não corresponderem a uma penalização ou consequência, a sensação pode ser de que o sistema não protege quem sofre e ficar-se numa zona de “não vale a pena”, adverte Ana Bispo Ramires.
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