“Toda a conduta dos arguidos (…) aponta num único sentido - do plano elaborado pelos arguidos Valdemar Alves e Bruno Gomes de fazer chegar ao concelho de Pedrógão Grande mais dinheiro do que aos demais concelhos, através da aparência da necessidade de reconstrução de habitações não permanentes ardidas”, lê-se no acórdão, de 338 páginas, disponibilizado à comunicação social.
O ex-presidente da Câmara de Pedrógão Grande Valdemar Alves foi hoje condenado na pena única de sete anos de prisão, por 13 crimes de prevaricação de titular de cargo político e 13 crimes de burla qualificada, alguns destes na forma tentada.
Já o antigo vereador Bruno Gomes foi condenado a seis anos de prisão, por 11 crimes de prevaricação de titular de cargo político e 13 crimes de burla qualificada, sendo que três o foram na forma tentada.
Os restantes 26 arguidos eram requerentes da reconstrução de imóveis como se de primeira habitação se tratasse, familiares destes ou funcionários das Finanças e de Junta de Freguesia, tendo sido absolvidos 14.
Para o coletivo de juízes, os antigos autarcas sabiam que, “com a aparência que criavam, através da narração de factos falsos, obtinham um benefício para os requerentes das habitações em causa e para o concelho de Pedrógão Grande, a que de outro modo não teriam direito (como, de resto, segundas habitações dos demais concelhos atingidos pelos incêndios não tiveram)”.
“Resulta por demais evidente que o apoio do Fundo Revita (e entidades com o mesmo protocoladas) à reconstrução, na sequência dos incêndios ocorridos, se destinava à recuperação das primeiras necessidades dos munícipes atingidos (e independentemente de, em momento posterior, se poder vir a decidir afetar o remanescente dos apoios a outras necessidades, conforme previsto no regulamento – o que não incumbia aos arguidos decidir, menos ainda naquele momento)”, lê-se no documento.
O Revita, criado pelo Governo, é um fundo de apoio às populações e à revitalização das áreas afetadas pelos incêndios ocorridos em junho de 2017. Agrega a recolha de donativos em dinheiro, em espécie de bens móveis ou em serviços.
Ainda segundo o documento, os dois arguidos entenderam levar a cabo, no âmbito deste fundo “e do apoio das entidades protocoladas (e não só), obras de reconstrução de habitações não permanentes”.
“Fizeram-no por discordarem do estabelecido no regulamento e da decisão (política) que o acompanhou de não apoio das habitações não permanentes, que conheciam perfeitamente e sobre o que não tinham qualquer dúvida – tanto assim que tiveram necessidade de fazer passar por habitações permanentes (com falsas declarações, falsas mudanças de domicílio fiscal e documentação variada) habitações que sabiam não terem qualquer direito ao referido apoio”, adianta.
Para o Tribunal, “é de tal forma evidente e patente, da mera análise dos documentos que instruíam os processos, que os imóveis em causa nos mesmos não respeitavam a habitações permanentes (não obstante os arguidos afirmassem e declarassem o contrário), que resulta claro e cristalino” que Bruno Gomes e Valdemar Alves “tinham perfeito conhecimento das informações falsas que prestavam nos mencionados processos e que as quiseram prestar de modo a conseguir um benefício para cada um dos requerentes”.
Segundo o coletivo de juízes, no que respeita ao Fundo Revita e às entidades protocoladas (União das Misericórdias Portuguesas, Fundação Calouste Gulbenkian e Cruz Vermelha Portuguesa), “dúvidas inexistem de que os apoios em causa apenas foram concedidos por se haver acreditado nas informações prestadas pelo município, a quem competia a instrução dos processos de candidatura e a elaboração de proposta de decisão, de que as habitações a reconstruir eram permanentes”.
O acórdão assinala ainda que, em consequência dos danos causados pelos incêndios de junho de 2017, “o estado da generalidade das habitações ardidas não permitia apurar da habitabilidade das mesmas ou do seu caráter devoluto” antes dos fogos.
Por isso, “não tinha o Revita nem as entidades protocoladas maneira de saber tais informações relativas às habitações ardidas” a não ser que se substituíssem ao município “no trabalho de levantamento e sindicância das habitações permanentes e não permanentes”, pelo que confiaram nas “informações prestadas pelas entidades competentes”.
Não merece credibilidade versão de que tudo iria ser reconstruído
O Tribunal Judicial de Leiria sustentou, no acórdão sobre a reconstrução de casas de Pedrógão Grande após os incêndios de 2017 e na parte relativa aos requerentes de apoio, que não merece credibilidade a versão de que tudo iria ser reconstruído.
“Da conjugação de toda a prova produzida e dos factos praticados pelos arguidos requerentes, resulta, assim, evidente o conhecimento e vontade por banda destes de prática de factos contrários à lei e por esta proibidos e punidos – não merecendo a mínima credibilidade a alegada versão de que pensavam que tudo iria ser reconstruído, por o terem ouvido na comunicação social, assim como nas sessões de esclarecimento das freguesias”, lê-se no acórdão, de 338 páginas, disponibilizado aos jornalistas.
Para o coletivo de juízes, “caso isso correspondesse à verdade, os processos de candidatura apresentados o plasmariam, declarando a verdade acerca da não residência dos mesmos nas habitações em causa – o que não sucedeu”.
Para o Tribunal Judicial de Leiria, face às condutas praticadas pelos 12 requerentes condenados, que instruíram “processos de candidatura com documentos contendo factos que sabiam inverídicos”, conjugadas “com as mais elementares regras da normalidade e experiência comum, dúvidas inexistem de que conheciam a ilicitude do seu comportamento, mas que, não obstante, decidiram praticá-lo, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”.
“Note-se que decorre do depoimento de mais do que uma testemunha inquirida que, quando se dirigiam ao município para dar início ao processo de candidatura, os munícipes eram informados de que primeiro se reconstruiriam as primeiras habitações e só depois as restantes, e que, caso pretendessem alterar essa ordem, teriam de alterar o seu domicílio fiscal (…), assim como reunir elementos que permitissem comprovar a residência no local à data dos incêndios”, lê-se no documento.
Acresce que, “caso apresentassem mais do que uma candidatura, eram os munícipes informados de que apenas poderiam habitar em um dos imóveis”.
Segundo o acórdão, “houve mesmo quem tenha recusado praticar os factos sugeridos (…), por saber que os factos que iriam ser feitos constar do processo de candidatura não correspondiam à verdade”, tanto mais que “conhecia a população de Pedrógão, à data, e de perto, as dificuldades de vida e as necessidades prementes de quem tinha perdido (além de familiares, bens e valores irrecuperáveis) a sua primeira habitação ou habitação permanente”.
Os apoios destinavam-se “a acorrer a tais situações, o que resultou desde sempre claro e consensual para vários dos inquiridos em audiência de julgamento (incluindo testemunhas apresentadas pelas defesas)”.
“E, dizemos nós, para o cidadão comum”, acrescentam os três magistrados judiciais.
O julgamento das alegadas irregularidades na reconstrução de casas em Pedrógão Grande após os incêndios de junho de 2017, com 28 arguidos, começou em 26 de outubro de 2020 e terminou hoje com a leitura do acórdão no Tribunal Judicial de Leiria.
O incêndio que deflagrou em 17 de junho de 2017 em Pedrógão Grande, distrito de Leiria, e que alastrou a concelhos vizinhos, provocou 66 mortos e mais de 250 feridos, sete dos quais graves, e destruiu meio milhar de casas, 261 das quais habitações permanentes, e 50 empresas.
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