“Cheguei há mais de 20 anos à Boa Vista para conhecer a ilha e encontrei uma situação muito interessante. A cultura crioula é única no mundo, precisa de memória, de um lugar onde possa contar a história deste povo. É um património da Humanidade que deve ser conservado para o futuro”, começou por explicar à Lusa Maurizio Rossi, 59 anos, arqueólogo formado na Universidade de Florença, em Itália.
Construído praticamente pelas suas próprias mãos desde 2003, o Museu dos Náufragos, com os seus três andares, abriu portas em Sal Rei, ilha da Boa Vista, uma das mais afetadas pela pirataria e naufrágios em Cabo Verde, em novembro de 2019, poucos meses antes da pandemia que a acabaria por isolar.
Nele é contada a história do Homem, a partir dos 500 anos de Cabo Verde, do período das descobrimentos, envolvendo várias nações, da escravidão, do isolamento e da sobrevivência ou da seca histórica.
“Todo o mundo passou por aqui”, recordou Maurizio, que ao radicar-se na Boa Vista conseguiu igualmente seduzir os dois filhos para aquele que acabaria por tornar-se no seu projeto de vida.
“Náufrago é uma condição em que todos os homens vivem ao longo da sua vida. É uma pessoa que está perdida no mar da vida sem encontrar uma ilha que pode salvar a sua alma e a sua história. Este é um museu de três andares que começa na parte mais escura da história, da alma, a pirataria, que era um problema grande nesta ilha, e a escravidão”, explicou.
O museu, privado e o único do género em Cabo Verde, associado à fundação com o mesmo nome que recolhe donativos, artefactos e apoios, foi construído com materiais encontrados na ilha, como pedra calcária branca e rocha vulcânica, e na sua exibição permanente representa a cultura antropológica do arquipélago. Entre centenas de elementos em exibição, conta com achados de naufrágios de navios históricos ao largo da Boa Vista, peças do período dos ataques de piratas à Boa Vista, do envio de escravos para a América, mas também da sua arte e evolução no encontro de culturas.
A história é por isso contada do ponto de vista de um náufrago “perdido no mar da vida”. Para Maurizio, o museu realiza a dupla tarefa de preservar a história, a cultura e a diversidade do passado e oferecer um lugar para um debate aberto sobre o futuro e uma melhor compreensão do ser humano.
“Cabo Verde pode ser um exemplo de humanidade no contacto e de um novo modo de juntar pessoas. Pretas, brancas, o que for. Aqui temos uma nova visão da vida”, revelou, reconhecendo ao mesmo tempo que deixou de ver este relacionamento humano na Europa.
No interior do espaço, que descreve como “um sonho de vida”, é possível encontrar grandes mosaicos, vitrais, pinturas e esculturas que narram a história das ilhas de Cabo Verde, nos três níveis idealizados, retratando um caminho ascendente.
A aventura começa nas profundezas do oceano, com as ruínas de um naufrágio representando as profundezas da alma humana. No aspeto material, Maurizio Rossi recorda que se estima, só na Boa Vista, entre 350 a 400 navios naufragados, dos quais pouco se sabe.
“Era preciso fazer escavações científicas”, defendeu.
Segue-se, após um lance de escadas, a “superfície” retratada pelo museu, com a história e cultura de Cabo Verde, preenchida também com a riqueza e a fome. No terceiro piso é possível encontrar um jardim de plantas exuberantes com peças de arte contemporânea de diferentes artistas cabo-verdianos, que continuam a narrar o valor histórico-cultural do arquipélago.
“É um museu que conta a história com a linguagem da arte”, afirmou.
Depois da pandemia de covid-19, poucos meses após a inauguração, o museu voltou a abrir portas em outubro passado e os turistas começam agora a chegar, mas “ainda devagar”.
“Foram quatro meses de trabalho, estava cheio de turismo na Boa Vista. Tínhamos 50 a 60 pessoas por dia e depois tudo fechado durante quase dois anos. Agora vamos iniciando, de novo”, assumiu, enquanto os turistas voltam às visitas ao espaço.
Para já, tenta ainda alargar a coleção, admitindo que esta é uma forma também de valorizar o património cabo-verdiano, evitando que peças históricas deixem o arquipélago, num processo que vai gerindo com o Instituto do Património Cultural e a Câmara Municipal da Boa Vista.
Maurizio Rossi já trabalhou em escavações arqueológicos em vários países do norte de África, como Argélia, Líbia ou Tunísia, mas em Cabo Verde cumpriu o sonho.
“Isto é uma paixão e um trabalho. São as duas coisas juntas”, atirou.
Para já admite que o futuro passa por continuar na Boa Vista.
“Não estou interessado em voltar a Itália. (…) Prefiro ficar e acompanhar o desenvolvimento de Cabo Verde, o seu valor humano”, concluiu.
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