“É como o meu marido sempre disse: O vulcão tirou-nos o trabalho, mas voltará a dar. E assim foi”, começou por contar, em conversa com a Lusa, Letícia Alfare Delorenzo, francesa de origem italiana, já com os movimentos limitados pelos seis meses de gravidez.
“Vai nascer aqui e será um filho do vulcão. Terá uma relação com esta terra como o seu pai”, garante, numa conversa que alterna com os afazeres de uma pensão repleta de turistas e com vista para o 2.829 metros do pico mais alto do vulcão.
Letícia trocou França por Chã das Caldeiras, aldeia que fica a quase 2.000 metros de altitude, precisamente dois meses antes da erupção na ilha do Fogo.
A erupção em Chã das Caldeiras, então com 210 casas, cerca 1.300 habitantes e uma dezena de pensões turísticas, iniciou-se há precisamente cinco anos, na manhã do dia 23 de novembro de 2014, para terminar apenas em 8 de fevereiro do ano seguinte. A última tinha acontecido em 1995.
Todo o dia esperava que a lava parasse, mas acabou por não parar. E quinze dias depois chegou à nossa casa. Perdemos tudo
Após o início da erupção, que começou a sentir, alertada pelo marido ainda durante a madrugada, passou a viver “um dia de cada vez”, enquanto tentavam esvaziar a pensão. “Todo o dia esperava que a lava parasse, mas acabou por não parar. E quinze dias depois chegou à nossa casa. Perdemos tudo”, recorda, agora conformada com o susto que viveu há cinco anos.
Nas primeiras duas semanas a lava cobriu os cinco quartos da pensão turística Alcindo, que explorava em conjunto com o marido.
Letícia, que tinha chegado em setembro de 2014 “com muitos sonhos e muita vontade” para a nova vida junto ao vulcão, diz que, ao fim de dois meses, tudo parou: “O trabalho, o nosso futuro, os projetos”.
Numa aldeia em que antes viviam mais de 200 famílias, dependentes da agricultura e do turismo, quase tudo ficou tomado por um mar de lava.
Se o Alcindo decidiu regressar, não faz mal. Regressei também
Ainda assim, voltou Chã das Caldeiras, para respeitar a vontade do marido, de não deixar a terra: “Se o Alcindo decidiu regressar, não faz mal. Regressei também”.
Tal como o caso de Letícia e Alcindo, pelo menos 115 casas foram reconstruídas e as famílias foram regressando desde o fim da erupção.
Pensão Alcindo abriu de novo as portas
A pensão que era também a sua casa e do marido perdeu-se, engolida pela lava solidificada que ainda cobre toda a aldeia, que segue aos poucos em reconstrução. Muitos meses depois, e após investir 150.000 euros de poupanças e apoios de amigos e familiares, a pensão Alcindo está de novo aberta, agora com nove quartos.
Alcindo, nome pelo qual é conhecido na terra o marido, João Pedro de Pina Silva, tem 36 anos. Nasceu e cresceu em Chã das Caldeiras e assistiu às duas últimas erupções. Em 1995 tinha apenas 11 anos e chegou a servir como guia nas operações. Em 2014 tinha inaugurado há poucas semanas o negócio da pensão, em conjunto com Letícia.
“Não foi só a construção, foi também a dedicação que tínhamos naquilo. Tinha sido inaugurada em agosto, para mim era um orgulho”, recorda.
Apesar de tudo, abandonar Chã das Caldeiras, assegura, esteve sempre fora de questão, por ser a sua terra e pelo fascínio que o vulcão sempre representou. Ao ponto de na última erupção tudo ter feito para ser o primeiro a chegar à cratera que se criou, chegando hoje a um pico de 2.089 metros.
Desde os seis anos que estou em contacto com o vulcão. Acabei por o conhecer, conhecer o terreno, saber com o que estou a lidar, sem ter estudos
“Desde os seis anos que estou em contacto com o vulcão. Acabei por o conhecer, conhecer o terreno, saber com o que estou a lidar, sem ter estudos”, explica, orgulhoso, enquanto aponta para o ponto mais alto do vulcão ou "Homem Grande", como é conhecido da aldeia, a quase 2.900 metros de altitude.
Assume, ainda assim, mágoa pelas críticas de quem questiona o porquê da população de Chã das Caldeiras insistir em voltar, após cada erupção.
“Vivemos aqui porque somos daqui. Tudo o que sabemos fazer aprendemos aqui. Esse vulcão é um segundo deus para nós”, garante, indignado com a possibilidade então levantada de travar o regresso da população a Chã das Caldeiras e contrapondo com a agricultura - das vinhas à fruta, passando por legumes e criação de gado - que as condições locais propiciam e que todos praticam.
Apesar de lamentar a falta de uma sala de aulas, equipamentos de saúde ou polícia no topo do vulcão, garante que não há receio em ficar em Chã das Caldeiras. Emprega diretamente seis pessoas da terra e os turistas que pernoitam na pensão, mantendo a casa quase sempre cheia, também representam trabalho para as dezenas de guias que moram na aldeia.
A minha história está aqui. A coisa que eu sei fazer é tratar da agricultura e receber os turistas. E a terra que eu conheço é a do vulcão
“A minha história está aqui. A coisa que eu sei fazer é tratar da agricultura e receber os turistas. E a terra que eu conheço é a do vulcão”, assume, enquanto a Letícia corrobora. Sair da aldeia e deixar o vulcão está fora de questão: “É uma vida muito agradável, sem stress, com trabalho. É outra maneira de viver. Estou muito feliz aqui”.
Lava na sala de jantar. Como a casa de Sónia e David se tornou uma atração turística
Quase três meses depois do início da erupção do vulcão, um rio de lava ainda escorria pelo lugar da Bangaeira, Chã das Caldeiras, rodeando então a casa construída por Sónia e pelo marido.
Para surpresa de todos, a lava ficou, literalmente, na sala de jantar da casa, tornando-a hoje num ponto de visita obrigatório para os turistas que chegam ao vulcão que mudou a vida de Sónia e do marido, David.
Da casa, ainda por estrear e das poucas que escapou à destruição da lava, fizeram uma pensão e Sónia, então sem trabalho, ganhou um emprego: Receber os turistas que chegavam para visitar e pernoitar na também apelidada de “casa com lava dentro”.
“Não era este o plano. Trabalhava como doceira, na adega, que foi destruída pela lava. Apareceu esta oportunidade e eu comecei a receber turistas cá em casa”, recordou à Lusa Sónia Vicente, de 32 anos.
Nessa altura, em 2014, o casal, com uma filha, vivia dias de ansiedade, preparando a mudança para a casa nova, que não tiveram tempo de estrear. “A casa já estava praticamente pronta. Tínhamos planos para mudar em dezembro, na época festiva, e a erupção começou em novembro. De repente foi um pesadelo”, conta, recordando o “rio de lava” que então descia até ao lugares da Bangaeira e da Portela, deixando uma crosta que solidificou, pelo caminho, juntamente com as dezenas de casas literalmente engolidas, deixando apenas os telhados à visita.
Durante 77 dias a casa escapou ao vulcão. A 8 de fevereiro, a lava chegou
Então prevista para ser apenas residência da família, a casa foi escapando durante os 77 dias da erupção, mas não passou do dia 8 de fevereiro.
“Ficou rodeada pela lava só no último dia da erupção. Pensamos que não tinha sobrado nada”, explica.
Apesar do sorriso com que tenta disfarçar a aflição que foi pensar ter perdido a casa que levou anos a construir, Sónia ainda tem na memória a chamada que dias depois recebeu do marido, que nunca deixou a aldeia, na esperança de salvar alguma coisa. Cerca de uma semana depois do fim da erupção, David conseguiu entrar na residência rodeada até às paredes exteriores pela lava e a surpresa foi total: “A nossa casa está boa”, disse-lhe.
De facto, a casa ficou incólume, embora parte do que seria a sala de jantar tenha ficado ocupada por uma enorme camada de lava solidificada, em extensão e altura.
Nos outros lugares já não havia pensões, não havia casas, começaram a pedir para ficar
Numa aldeia que desapareceu do mapa, uma casa em perfeitas condições e com três dos quatro quartos livres, rapidamente se tornou em alojamento para quem ali chegava.
“Nos outros lugares já não havia pensões, não havia casas, começaram a pedir para ficar. Começamos a trabalhar, a receber as pessoas que chegavam. E assim criamos o gosto pelo turismo, pelo alojamento”, diz.
Todos os anos foram acrescentando um quarto à residência, que entretanto se transformou na Casa David, familiar por ser também a casa do casal e das agora duas filhas. “É um ponto turístico, as pessoas vêm cá para matar a curiosidade da casa com lava dentro”, brinca.
Além da curiosidade, os turistas até dormem na pensão, habitualmente cheia, fazendo as refeições lado a lado com a rocha negra, que permanece tal e qual como quando a erupção da ilha do Fogo terminou.
Entretanto, a própria casa foi aumentada e recuperada no exterior também com recurso à rocha da lava solidificada, retirada da envolvente nos dias seguintes ao fim da erupção à força de braços, pelo casal, família e amigos.
Tenho de estar agradecida ao vulcão, nunca pensei que ia sobrar alguma coisa
“Foi uma grande alegria, não estava à espera. Tenho de estar agradecida ao vulcão, nunca pensei que ia sobrar alguma coisa”, desabafa.
Daí que, num sentimento que é dominante numa aldeia que segue em reconstrução cinco anos depois, Sónia confesse não ter medo do vulcão que lhe mudou a vida.
A população não tem medo. Foi muito triste, mas medo de morrer não temos. Foi algo calmo, tranquilo, dá para protegermos, salvar bens importantes
“A população não tem medo. Foi muito triste, mas medo de morrer não temos. Foi algo calmo, tranquilo, dá para protegermos, salvar bens importantes”, diz, enquanto se confessa agradecida pela oportunidade que foi criada.
Também por isso, deixar Chã das Caldeiras não está em cima da mesa: “Nem vai estar. Nós fomos a primeira família a subir [voltar a viver na aldeia]”.
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