Logo após a queda súbita do regime de Bashar al-Assad, que se exilou na Rússia antes de a capital síria ser tomada no domingo pelos grupos militares revoltosos do seu país, cerca de três mil prisioneiros de Saydnaya foram de imediato libertados, na ausência dos guardas que também se puseram em fuga pelos portões do gigantesco complexo, agora assinalado pela saudação “Free Syria”.

No caminho inverso, milhares de sírios entupiram a estrada de acesso ao longo do árido Rif Dimashq, na esperança de encontrar familiares entre os reclusos ou pistas sobre o paradeiro dos desaparecidos.

Passaram-se quatro dias e as buscas mantêm-se, com operários a abrir caminho com martelos pneumáticos nas caves dos três edifícios dispostos em Y da chamada “zona branca”, seguindo rumores, entretanto desmentidos por antigos prisioneiros, de cárceres ocultas no subsolo, a que se juntam métodos ancestrais usados por um homem que perscruta o pátio com auxílio de duas varas metálicas a fim de supostamente encontrar uma localização provável para escavar.

À entrada, dezenas de pessoas passam as noites frias em colchões de espuma ao relento sob um bosque de cedros, e os dias pesquisando milhares de documentos oficiais da prisão, muitos dos quais com a inscrição “confidencial”, com fé de que um deles tenha o nome de um familiar em parte incerta.

Os longos corredores dos pisos superiores são percorridos como um museu por visitantes, que espreitam as celas cobertas por tapetes de mantas e roupas deixadas para trás pelos seus antigos ocupantes, tal como mensagens ocasionais de despedida em árabe nas paredes sujas, de gratidão às forças rebeldes ou de vingança contra o clã do Presidente sírio deposto: “Vamos atrás de ti”.

Yusuf Daham Shumlan, 35 anos, passou por um daquelas celas em 2016: “Era aqui que estava”, relata, apontando para o lugar exato onde ficou detido, enquanto se agacha e pousa um joelho no chão para explicar como batalhava por espaço entre 70 reclusos num máximo de 50 metros quadrados.

O habitante de Deir ez-Zor, no leste da Síria, recorda que foi detido logo a seguir ao seu irmão, há oito anos, por suspeita de terrorismo e colocado numa prisão na sua cidade natal, antes de ser encaminhado para Saydnaya, e também o procedimento padrão quando foi encarcerado com a multidão dos outros prisioneiros: “Cheguei vendado, espancaram-me brutalmente e chutaram-me para dentro da cela”. Numa das torturas a que foi sujeito, partiram-lhe uma perna que ainda conserva placas metálicas.

Yusuf descreve ainda que toda a vida se desenrolava dentro da cela, incluindo a higiene num minúsculo espaço sanitário contíguo, a comida era fornecida através das grades — habitualmente pão, batata mal cozida e tomate — e tinha de durar três dias, as conversas eram proibidas e severamente punidas se fossem detetadas pelos guardas ou pelas câmaras de vigilância. Quase ninguém escapava de doenças.

Apesar de tudo, pertenceu a um grupo reduzido de presos de curta duração e, ao fim de alguns dias, foi transferido para uma cadeia militar e depois libertado sem qualquer explicação, ao contrário do seu irmão, que permaneceu na cadeia e que nunca viu enquanto esteve detido.

Yusuf ainda conseguiu visitá-lo há seis meses em Saydnaya, “muito doente e esquelético”, mas agora encontra-se na lista dos desaparecidos. “Estou aqui há quatro dias à procura dele, talvez haja mesmo mais prisões nos subterrâneos”.

É lá que os martelos pneumáticos continuam a bater o subsolo, depois de os “capacetes brancos” da proteção civil síria já terem feito o mesmo e sem sucesso, num trabalho vigiado pelos visitantes da prisão, horrorizados com o tratamento especial dado aos prisioneiros reservados aos pisos inferiores, afinal tão real como as descrições de antigos reclusos e denúncias internacionais de organizações de direitos humanos, sempre rejeitadas pelas autoridades de Damasco.

Nas caves, os presos eram privados de luz e depositados nas dezenas de celas húmidas, imundas e muito mais pequenas do que aquela que recebeu Yusuf, segundo um dos seus antigos ocupantes, que ali permaneceu entre 2019 e 2021, submetido a este tratamento cruel a que nem a doença era tolerada.

“Se nos queixávamos de alguma coisa, era espancamento certo”, recorda este antigo prisioneiro, descrevendo inspeções clínicas que implicavam o procedimento de cada recluso se despir na totalidade dentro de um cubículo gradeado cravado na parede, antes de ser observado pelo médico, que se sentava a uma pequena secretária solitária num enorme salão, e que ainda se encontra no local.

O ex-prisioneiro natural da capital síria, também ele detido por suspeita de atos de terrorismo e militância nas forças de oposição, prefere não ser identificado nem fotografado, mantendo bem presente a ameaça que lhe dirigiram quando foi libertado sem ter sido julgado: “Disseram-me para nunca contar o que vi aqui, ou nunca mais veria a luz do sol, e eu já não confio em ninguém. Nem no novo governo”.

E essa experiência, conta entre um cheiro persistente de latrina e esgoto, já a conheceu naqueles dois longos anos, em que apenas em intervalos de dois meses era permitido sair das catacumbas de Saydnaya para limpar o pátio “e os restos de sangue”. Por cada cem presos que se apresentava ao trabalho, “pelo menos cinco ou seis já não voltavam às celas” e desapareciam sem deixar rasto.

No exterior da prisão, uma retroescavadora abre terreno, junto dos extensos e altos muros de betão com arame farpado, presumivelmente em busca de valas comuns, e bem perto do local dos enforcamentos de que sobram ainda duas cordas vermelhas penduradas.

Segundo a Amnistia Internacional, estima-se que cerca de 13 mil pessoas tenham sido executadas nesta cadeia, só entre 2011 e 2015, no rescaldo da Primavera Árabe e em plena guerra civil que devastou o país.

“Só quero que este edifício seja destruído e que nunca mais ninguém venha para aqui”, declara o antigo prisioneiro, que, logo após a confirmação da queda de Assad, esteve na primeira linha dos libertadores de Saydnaya, de onde muitos reclusos saíram diretamente para o hospital e outros para a morgue. “Há prisões assim em Portugal? Vai alguém preso por dizer mal do presidente?”, questiona ainda, ao mesmo tempo que exibe uma mão sem três dedos, amputados numa das sessões de tortura a que foi sujeito.

O enviado da ONU para a Síria, Geir Pedersen, exigiu hoje acesso completo de observadores independentes a centros de detenção do regime deposto de Assad para documentar e preservar provas de violações dos direitos humanos.

Estas deverão incluir a célebre prensa do “edifício vermelho”, usada como instrumento de tortura através de esmagamento para os principais presos políticos, e onde hoje só a intervenção de militares rebeldes da Organização para a Libertação do Levante (HTS) evitou com disparos para o ar o linchamento de um homem por suspeita de ter sido guarda no chamado “matadouro humano”, ou “matadouro de Assad”.

Dentro dos sinistros muros de Saydnaya, todos os relatos apontam para a verdade como um objetivo secundário, depois da degradação e punição de suspeitos por acusar, mas é por ela que Nebar, uma mãe da cidade de Hama está há quatro dias acampada junto do edifício em busca de dois filhos, Ghazwan e Mohanad, presos há 12 anos, tal como Ali Yassin do seu filho Samer, capturado em 2018.