Pavlo Kyrylenko, 35 anos, responsável pela administração do estado regional de Donetsk e dirigente da administração regional civil-militar, recebe um grupo de jornalistas estrangeiros no renovado edifício das autoridades locais, onde predomina o branco e com suaves medidas de segurança à entrada.
Kramatorsk está situada a cerca de 100 quilómetros da “linha de contacto”, como aqui é denominada a linha da frente que separa o exército ucraniano das forças separatistas pró-russas, que agora possuem o seu quartel-general na cidade de Donetsk, a tradicional capital deste “oblast”, como nestas terras eslavas se designam as subdivisões administrativas e territoriais.
“Esperamos qualquer cenário. Mas as nossas Forças Armadas, a Guarda Nacional, a nossa defesa territorial, todos estamos preparados para nos defender e a população mobilizada para se juntar às nossas forças, e até às últimas consequências”, assinala, numa referência a uma eventual invasão militar russa, que Kiev e os aliados ocidentais asseguram não estar excluída, e a uma resposta que poderá incluir a “guerra de guerrilhas”.
Um cenário extremo, mas que não seria inédito nestas longínquas paragens da Europa, no Donbass, com larga tradição económica, histórica e cultural. A viagem de sete horas de comboio desde Kiev em direção à região leste do segundo maior país da Europa em área, após a Rússia, atravessa florestas, lagos gelados, pequenas aldeias cobertas de neve imaculada, com as suas casas tradicionais com cercas, perto das suas terras em pousio, as chaminés a fumegarem.
Um cenário longe do Holodomor, o “extermínio pela fome” em ucraniano, a Grande Fome orquestrada por Estaline que avassalou os campos ucranianos e que provocou cerca de 4,5 milhões de mortos entre 1932 e 1933. Um acontecimento que se tornou central na construção da identidade ucraniana.
Mas estes são territórios de fronteiras movediças. Quando declarou a independência em 1991 após a dissolução da União Soviética, a Ucrânia independente herdava uma história movimentada, que explica a sua relação com o passado consoante a posição geográfica das suas regiões.
As zonas do leste, em particular a bacia do Donbass, provêm do império russo enquanto as do ocidente foram incluídas na Ucrânia entre 1939 e 1945, à custa da Polónia, da Roménia ou da Checoslováquia.
A independência ucraniana alterou o estatuto das regiões orientais do país. A transição económica atingiu uma indústria envelhecida, e os mineiros, na larga maioria russófonos, sentiram-se desqualificados e ostracizados.
Após o início do conflito com os separatistas pró-russos na primavera de 2014, as regiões de Donetsk e Lugansk, e respetivas capitais, declararam a sua autonomia através de referendos não reconhecidos por Kiev. Na sequência do recuo territorial, as autoridades locais elegeram Kramatorsk como a capital da “Donetsk” ucraniana.
Com cerca de 120 mil habitantes, a menos de 100 quilómetros da “linha de contacto” e que em outros tempos se orgulhava da sua produção industrial, como diversos componentes do famoso tanque soviético da série T, é agora uma cidade que parece suspensa no tempo.
Edifícios velhos, alguns remendados com veias de cimento cru a descerem pelas fachadas, denunciam as dificuldades do quotidiano num país com um nível de vida inferior em dois terços ao registado na Bulgária, apontado como o país mais pobre da União Europeia.
Mas a verve nacionalista está presente, através das faixas retangulares suspensas no meio de diversas avenidas com as cores da bandeira ucraniana, ou em postes de alta tensão pintados, de alto a baixo, de azul e amarelo.
“Cerca de um terço da região do Donetsk está ocupada”, precisa Kyrylenko, que garante o empenhamento da população local em defender o seu território, apesar de assegurar que não se instalou o pânico na sequência da crescente concentração de tropas russas na fronteira e os alerta sobre uma “iminente invasão”.
O responsável da Donetsk ucraniana recusa fornecer informações sobre o atual número de tropas ucranianas enviadas para perto da “linha de contacto” que separa as duas forças e delineada nos bloqueados acordos de Minsk, em 2014 e 2015, e confirma contínuas escaramuças junto à zona de separação.
“Neste ano, até 25 de janeiro, registámos cinco bombardeamentos de artilharia e uso de armas automáticas”, revela, fatores que atribui “a uma situação geopolítica em desenvolvimento”. E assegura que as forças ucranianas “não disparam em resposta”.
Antes da guerra, toda a região de Donetsk contava com 4,5 milhões de habitantes. Atualmente, na parte controlada pelos ucranianos - dois terços do território, insiste -, vivem 1,5 milhões, incluindo 513 mil deslocados internos, para além dos 500 mil que abandonaram a região devido à guerra.
Uma fratura imposta pelo peso da história, da memória, das manipulações políticas. Nos anos que se seguiram à independência ucraniana em 1991, o leste, em particular a região industrial e mineira do Donbass, um dos centros simbólico e económico da ex-URSS, tornou-se numa zona de fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, espaço de diversas identidades e múltiplas lealdades.
Nas “regiões ocupadas”, segundo a terminologia oficial, o passado soviético permaneceu presente, as ligações com a Rússia robustas, e o russo a língua dominante. Os acontecimentos de 2014 e a crise, depois a guerra, nas regiões do leste, que combatem pela autonomia com o apoio de Moscovo, acelerou o processo, num país em que cerca de 30% dos 40 milhões de habitantes do país se afirmam “russófimos”.
Os opositores da designada “revolução de Maidan” de 2014, e que já se tinham distanciado da “revolução laranja” de 2004 onde se impôs o “pró-ocidental” e futuro Presidente Viktor Yushchenko, recorrem com frequência aos símbolos de uma nostalgia soviética (a fita de São Jorge, com cores preta e laranja e símbolo da vitória do Exército Vermelho sobre a Alemanha nazi), que os combatentes pró-russo do Donbass fazem questão de ostentar.
Todos estes fatores permanecem à flor da pele, e também transparecem no discurso do responsável ucraniano pela região do Donetsk sob o seu controlo. Socorre-se da terminologia oficial para dizer que as populações que ficaram nos “territórios ocupados”, também com muitas regiões devastadas pelo prolongado conflito, “vive no medo”, que “a vida era melhor para todos antes de 2014”, que “tudo não passa de manipulação geopolítica por parte da Federação da Rússia”.
Apesar do irredentismo que se instalou nesta região fraturada, Pavlo Kyrylenko assegura que a população que permaneceu do outro lado da “linha de contacto” será sempre “bem-vinda”, mesmo antes do fim deste conflito, ainda sem solução.
“São ucranianos como nós, e quando estão abertos os postos de controlo na linha da frente alguns deslocam-se ao nosso lado para diversas necessidades”, garante, e mesmo que a maioria desta população russófona já tenha a possibilidade de obter passaporte russo.
“Temos de fazer ainda muito trabalho em relação aos passaportes, isso será uma tarefa após o fim da ocupação e a reintegração de toda a região”, vaticina.
*Por Pedro Caldeira Rodrigues, da agência Lusa, em Kramatorsk, leste da Ucrânia
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