A fome do vidro
Estamos no fim do verão de 1915. As tropas aliadas atolam-se na guerra de trincheiras contra os alemães na frente ocidental. Mais a sul, na Turquia otomana, as tropas britânicas, australianas e neozelandesas sofrem reveses na sua tentativa de controlar o estreito de Dardanelos. Enquanto os combates recrudescem, um agente do Ministério das Munições em Londres é enviado numa missão secreta à Suíça. O objetivo é garantir o fornecimento de uma das tecnologias militares de que o arsenal britânico precisa com grande urgência: binóculos.
Vivendo nós numa época em que qualquer pessoa pode encomendar binóculos para entrega no dia seguinte, parece difícil de acreditar que a supremacia militar pudesse depender da disponibilidade de utensílios aparentemente comuns como estes. Só que, durante grande parte do século XX, os binóculos representaram a vanguarda da tecnologia. Com efeito, como veremos em breve, em alguns aspetos essa situação ainda persiste. Em 1915, não havia dúvida de que assim era.
A maioria das guerras anteriores privilegiara o combate individual. Apontavam-se as armas e artilharia a olho nu, já que o seu alcance costumava ser bastante curto. Todavia, no início do século XX, o armamento progredira tanto que os projéteis transpunham dezenas de quilómetros, o que tornava os telémetros absolutamente indispensáveis. As armas de grande porte só eram úteis se pudessem ser bem apontadas. As probabilidades favoreciam quem dispusesse de binóculos em número suficiente para os soldados conseguirem perscrutar o horizonte do interior das trincheiras ou da superfície das ondas, e quem tivesse os melhores atiradores com as espingardas mais potentes e as miras telescópicas mais longas.
Em 1914, quando o arquiduque Francisco Fernando da Áustria e a sua mulher foram assassinados, acionando a reação em cadeia que conduziria à guerra, não houve dúvida de quem estava em vantagem: a Alemanha. Nas décadas precedentes, a Alemanha conseguira o domínio completo da produção global de instrumentos óticos de elevada precisão: binóculos, telescópios, periscópios e miras, bem como uma variedade de outras lentes científicas. Não se tratava apenas de uma questão académica ou económica. Tão absoluto era o monopólio alemão de miras telescópicas para espingardas que no início da guerra os seus atiradores desfrutaram uma vantagem considerável. As tropas aliadas eram sistematicamente aterrorizadas por artilheiros alemães que pareciam desafiar as leis da física, por conseguirem matar a distâncias tão grandes.
O nome da marca gravado no flanco de todas estas miras telescópicas era Zeiss e o vidro no seu interior provinha de uma firma diferente, embora aparentada: a Schott. Otto Schott foi um químico alemão que passou grande parte da vida a experimentar processos de melhorar o vidro, adicionando elementos da tabela periódica a uma mistura fundida, um por um, para verificar o tipo de efeitos que geravam. Foi Schott que inventou o vidro de borossilicato que ainda hoje utilizamos nas louças de forno e nas ampolas que contêm as vacinas contra a covid-19. Schott, Carl Zeiss e o cientista Ernst Abbe, todos eles tendo trabalhado na cidade turíngia de Jena, são hoje considerados as figuras principais do fabrico de vidro de elevada precisão.
Em 1914, a Grã-Bretanha dependia da Alemanha, ou antes da Zeiss, para perto de 60 por cento de todo o vidro de grande precisão (a França proporcionava-lhe 30 por cento, e apenas 10 por cento provinham de empresas britânicas, lideradas pela Chance Brothers de Smethwick, nas West Midlands). Em junho desse ano, pouco antes do assassínio do arquiduque, a British Science Guild anunciou que
a Grã-Bretanha está tão atrasada no desenvolvimento de utensílios óticos que não só é incapaz de prover às suas necessidades científicas e industriais, como no presente momento não conseguirá, sem auxílio, produzir as quantidades suficientes de instrumentos óticos de que o Exército e a Marinha precisam para travar a guerra contemporânea.
Após a declaração de guerra, os fornecimentos alemães cessaram de imediato. As necessidades dos seus próprios soldados levaram a França a reduzir as suas exportações, deixando os militares britânicos numa situação delicada. Em setembro de 1914, um dos principais comandantes do Exército britânico, o marechal de campo lorde Roberts, lançou um «apelo quase desesperado» ao público em geral para que doasse todo o tipo de binóculos e telescópios que tivesse em casa aos soldados que partiam para as trincheiras. No intervalo de poucas semanas, mais de dois mil tinham sido doados, incluindo quatro do rei e da rainha. Um gesto bonito, mas que estava longe das dezenas de milhares, ou mesmo centenas de milhares, necessários às forças armadas.
Quando o outono deu lugar ao inverno e, depois, à primavera, os jornais publicavam anúncios e pedidos desesperados de binóculos para os soldados a caminho da frente. Houve quem lhe chamasse a «fome do vidro» – um exemplo extremo do que acontece quando um país alcança um quase monopólio numa determinada indústria, com origem em grãos de areia. Porque, embora houvesse numerosas empresas britânicas capazes de fabricar binóculos, todas elas dependiam do vidro alemão.
Isto traz-nos de volta a 1915 e ao agente secreto enviado à neutral Suíça pelo Ministério das Munições. Porquê o secretismo? Por- que lhe fora pedido que fizesse algo de extraordinário. A sua missão, lê-se no relatório oficial do departamento, era comprar binóculos ao mesmo país que a Grã-Bretanha combatia:
As investigações preliminares conduziram à conclusão de que o único país que podia fornecer instrumentos óticos em quantidade era a Alemanha, e para conseguir evitar uma rutura no abastecimento destes instrumentos essenciais, um representante do Ministério das Munições foi enviado à Suíça em agosto de 1915, para garantir a obtenção de instrumentos junto de empresas alemãs.
O único facto mais surpreendente do que ter britânicos a pedir ajuda a alemães foi o que sucedeu depois: a resposta afirmativa da Alemanha.
«Através de fontes suíças foi confirmado, com base em informação recebida da Alemanha, que o Ministério da Guerra alemão se mostrou disposto a ceder ao Governo britânico os seguintes binóculos», lê-se no relato oficial, antes de listar os artigos: 32 000 binóculos de imediato, 15 000 por mês futuramente – o suficiente, em suma, para resolver o défice britânico. E não ficaram por aí: os alemães disponibilizavam também 500 miras telescópicas e umas adicionais cinco mil a dez mil por mês. «Para obter amostras dos instrumentos», continua o registo, com alguma desfaçatez, «sugeria-se que as forças britânicas examinassem o equipamento capturado aos oficiais e artilharia alemães».
Uma história surpreendente, mas o grau de pormenor patente nos registos oficiais britânicos é suficientemente convincente para indicar que o assunto foi levado muito a sério. Porque estaria a Alemanha disposta a proporcionar à Grã-Bretanha tecnologia que podia ser usada para matar alemães? A razão principal era precisarem desesperadamente de um produto em troca: a borracha. A Grã-Bretanha e os seus aliados – ou antes, as suas colónias – não só estavam entre os maiores produtores de borracha a nível mundial, mas também tinham bloqueado com sucesso as importações alemãs, privando o país dos recursos naturais do látex de borracha, um componente essencial de pneus, tubagens e correias de ventoinha para motores. Então, os alemães exigiam borracha em troca de binóculos, lê-se no relatório oficial, «operação a realizar na Suíça, na fronteira com a Alemanha».*
O que aconteceu a seguir continua a ser objeto de polémica. A história oficial do departamento sugere que, apesar deste acordo ilícito, a Grã-Bretanha resolveu virar-se para fornecedores alternativos, entre os quais os EUA. Mas as estatísticas comerciais mostram que a Grã-Bretanha recebeu de facto binóculos alemães nos anos subsequentes. Há alguns anos, quando Guy Hartcup, o falecido historiador da tecnologia militar, investigou esta questão encontrou um memorando nos Arquivos Nacionais da Grã-Bretanha que indicava terem sido entregues 32 mil binóculos em agosto de 1915. Esta informação parece ter sido posteriormente eliminada dos dossiês relevantes.
Borracha e vidro. Durante um período, a escassez destes materiais foi considerada tão crítica que as grandes potências estavam dispostas a suspender as regras habituais das guerras. Estes episódios valem a pena ser estudados, por serem tão raros. Durante grande parte das nossas vidas partimos do princípio de que um dado artigo, como uns binóculos, um semicondutor ou um pedaço de um metal comum, pode ser obtido com facilidade em determinadas regiões do mundo. No entanto, é frequente que uma catástrofe, seja ela uma guerra, uma pandemia ou um desafortunado navio a ficar retido no canal de Suez, nos obrigue a repensar esta ideia.
O que impressiona é que muito raramente o preço de tais bens reflete a sua importância. Considerando a contabilidade nacional de uma grande nação, é espantoso verificar a que ponto as matérias-primas se refletem no Produto Interno Bruto. Espantoso por ser tão insignificante.
Há uma lógica económica clara e convincente neste facto: estatísticas como o Produto Interno Bruto são, em última análise, medidas de quanto as pessoas irão pagar por determinado artigo, e 99 de 100 matérias-primas – metais, minerais ou alimentos – são bastante baratas. Porém, «preço» não equivale a «valor», e ocasionalmente, em circunstâncias extraordinárias como a guerra – «choques de oferta», como lhe chamam os economistas – seguimos o mesmo caminho que britânicos e alemães trilharam em 1915: dispostos a negociar entre si mercadorias fundamentais para melhor conseguirem matar-se uns aos outros. Acabamos com oficiais da Marinha de fações opostas empunhando binóculos produzidos na mesma fábrica, como sucedeu no mar do Norte em 1916, quando as armadas britânica e alemã se defrontaram na batalha da Jutlândia. Enquanto as bombas choviam em redor do seu navio, um oficial britânico comentou que era «interessante» que o «huno empoleirado num daqueles mastros distantes» observasse a armada britânica «através de um binóculo Zeiss igual ao que eu tinha para observar o navio dele».
* O modo como a Grã-Bretanha veio a dominar o mercado mundial da borracha é essencialmente uma história de espionagem industrial. Até ao fim do século XIX, a borracha cultivada com mais êxito, Hevea brasiliensis, era indígena da América do Sul. Mas, em 1876, Henry Wickham trouxe clandestinamente dezenas de milhares de sementes da árvore da borracha para os Kew Gardens, em Londres. Apenas uma fração delas germinou, mas os rebentos bem-sucedidos foram então transportados para as colónias britânicas na Ásia. Nos anos seguintes, a Malásia ultrapassou o Brasil como maior produtor mundial de borracha. Ainda hoje, o «roubo da borracha» continua a causar irritação no Brasil. Na realidade, o roubo não teria sido possível sem o vidro, visto que, quando aqueles frágeis rebentos foram enviados para a Ásia, apenas sobreviveram porque foram transportados numa «caixa wardiana» – uma estufa portátil feita de madeira e vidro.
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