Segundo o documento da ONU, datado de 15 de janeiro, do qual a AFP consultou uma cópia, um homem originário de Bambari, no centro do país, teria sido detido no mercado da cidade, depois de denunciado como membro das milícias dos ex-Seleka, o que negou, garantindo que é um simples comerciante.
Os militares ou paramilitares russos levaram-no para a sua base em Bambari, onde o terão torturado durante cinco dias, retalhando-lhe as costas com uma faca e cortando-lhe um dedo.
O relatório da ONU é integrado por fotografias que mostram a mão mutilada do homem, bem como as suas costas com numerosas cicatrizes.
Em declarações prestadas à AFP, hoje, em Bangui, o homem, que se disse chamar Mahamat Nour Mamadou, afirmou ter sido “detido na sexta-feira, dia 11 de janeiro, na rua”, por soldados das Forças Armadas Centro-Africanas (FACA).
“Levaram-me para a câmara, onde os [militares das] FACA e os russos estavam instalados. Os russos interrogaram-me, perguntavam-se se eu era um Séléka, se tinha armas”, contou.
A Séléka é o nome de uma antiga coligação de grupos armados que, provenientes do norte do país, derrubaram o Presidente François Bozizé, em 2013. Este golpe de Estado e a resposta de milícias autoproclamadas de autodefesa (as anti-Balaka) mergulharam o país em profunda crise.
Bambari, cidade estratégica, tem sido palco nos últimos meses de confrontos entre grupos armados e as autoridades e militares da missão da ONU. Em particular, o grupo União para a Paz na RCA (UPC, na sigla em francês), que integrou a Séléka, está presente na cidade.
“Depois (…) ataram-me as mãos, taparam-se a cabeça com um blusão e bateram-me. A seguir, prenderam-me toda a noite. Depois levaram-me para a sua base, cerca das 08:00 da manhã, no sábado”, detalhou Mahamat Nour Mamadou.
“Torturaram-me das 8:00 às 17:00. Bateram-me com correntes de metal, matracas de ferro, fizeram-me golpes num pé com uma faca, e também nos braços e nas costas. Partiram-me um dente com um tijolo”, disse, acrescentando: “Estavam lá vários russos e só um intérprete das FACA”.
Ainda segundo Mamadou, os seus agressores “pegaram numa grande faca” e cortaram-lhe o dedo, tendo golpeado outros dedos.
“Depois estrangularam-me com uma corrente. Acusavam-me de ser um Séléka”, acrescentou.
Mahamat Nour Mamadou apresenta cicatrizes profundas e golpes nas pernas, nos braços e nas costas, bem como sinais de ter sido ligado ao nível dos pulsos e dos tornozelos, constatou a AFP.
Segundo a ONU, a sua vida foi salva graças a uma intervenção das Forças de Segurança Interna, que o socorreram e libertaram em 15 de fevereiro, o que confirmou à AFP.
De acordo com o documento da ONU, pelo menos 28 militares ou mercenários russos estariam presentes em Bambari, dos quais só um falaria francês.
Mantêm relações estreitas com as FACA, mas “não comunicam com a polícia e ainda menos com a MINUSCA”, acrescenta o documento da ONU.
Em 23 de fevereiro, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Yves Le Drian, denunciou no Senado a presença na RCA de mercenários russos do grupo Wagner, grupo paramilitar suspeito de pertencer a um empresário russo, próximo do Kremlin, Evgéni Prigojnine.
Em julho de 2018, três jornalistas russos que investigavam na RCA a presença do grupo Wagner no país foram assassinados em circunstâncias ainda por esclarecer.
A RCA caiu no caos e na violência em 2013, depois do derrube do ex-Presidente François Bozizé por grupos armados juntos na designada Séléka (coligação, na língua franca local), o que suscitou a oposição de outras milícias, agrupadas sob a designação antibalaka.
O conflito neste país, com o tamanho da França e uma população que é menos de metade da portuguesa (4,6 milhões), já provocou 700 mil deslocados e 570 mil refugiados e colocou 2,5 milhões de pessoas a necessitarem de ajuda humanitária.
O governo controla cerca de um quinto do território. O resto é dividido por mais de 15 milícias que procuram obter dinheiro através de raptos, extorsão, bloqueio de vias de comunicação, recursos minerais (diamantes e ouro, entre outros), roubo de gado e abate de elefantes para venda de marfim.
A 6 de fevereiro foi assinado em Bangui, um acordo de paz entre o governo e 14 milícias.
Portugal está presente na RCA desde o início de 2017, no quadro da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização na República Centro-Africana (MINUSCA).
Portugal também integra e lidera a Missão Europeia de Treino Militar-República Centro-Africana (EUMT-RCA), comandada pelo brigadeiro-general Hermínio Teodoro Maio.
Na EUTM-RCA, que está empenhada na reconstrução das forças armadas do país, Portugal participa com um total de 53 militares (36 do Exército, nove da Força Aérea, cinco da Marinha e três militares brasileiros).
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