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“Não há nenhum grupo privado de saúde que não tenha uma coordenação. Como é que o SNS pode dar-se ao luxo de dizer que não precisa de uma coordenação ou que a coordenação é feita a partir do Ministério da Saúde”, questionou Marta Temido em entrevista à agência Lusa, a propósito dos cinco anos, que se assinalam no domingo, do aparecimento dos primeiros casos de covid-19 em Portugal.
Marta Temido, que apresentou o diploma que criou a Direção Executiva do SNS no último Conselho de Ministros em que participou, em 08 de setembro de 2022, antes de sair do Governo liderado por António Costa, defendeu que o Ministério da Saúde “deve definir políticas e alinhá-las com as melhores práticas que estão a ser feitas noutros países, e não propriamente estar a controlar o dia-a-dia da operação”.
“A quantidade de vezes que o ministro da Saúde, e penso que terá acontecido com todos, é confrontado, designadamente, na Assembleia da República com perguntas de natureza operacional e não de natureza política, mostra que andamos todos a fazer uma função que não é nossa”, comentou.
“A Direção Executiva não caiu do céu, nem foi uma ideia importada de um qualquer país (…). Nasceu de uma compreensão clara, espoletada por uma realidade, de que o sistema precisa de ser mais organizado, mais articulado, mais cooperante”.
Mas, ressalvou, “o objetivo não era ter um grande chefe ou uma estrutura pesada, complexa, ou de mando”, mas sim um diretor de operações, porque a prestação de cuidados do SNS “é uma máquina e está dividida em muitos bocados”, que não comunicam.
“Se calhar comunicam melhor agora do que comunicavam antes, fico contente por isso, mas as sinergias ainda são poucas para aquilo que era a sua possibilidade. A ideia da direção operacional era essa”, lamentou.
Marta Temido disse assistir à retirada de poderes à Direção Executiva com “a compreensão de que a realidade é evolutiva”.
“Nós achávamos que era o melhor caminho, outros têm um entendimento diferente. Com alguma pena, a pena de uma oportunidade perdida de fazer uma máquina mais funcionante”, sublinhou.
Questionada se a resposta do SNS a uma nova pandemia seria igual, num cenário em que muitos profissionais têm deixado o SNS, a antiga governante mostrou confiança em que “as pessoas se superariam mais uma vez”, mas disse que “o preocupante é o sistema de saúde”.
“O sistema evoluiu pouco, adaptou-se pouco, retirou poucas lições, até em termos daquilo que, na altura, percebemos da necessidade de uma coordenação forte da prestação de cuidados de saúde e que hoje, na política diária, tantas vezes criticamos que não é necessária”, frisou.
Comentando as críticas ao atual Governo de estar a entregar cuidados de saúde aos setores privado e social, Marta Temido afirmou que “os privados são importantes, e na pandemia foram fundamentais, mas são complementares”.
“Posso repetir 20 vezes, são complementares. Não podemos é deixar o SNS ser secado, porque não pode ficar, naturalmente, só com o que não é lucrativo, porque isso também não lhe permite subsistir. É uma questão de racionalidade, de lucidez”, alertou.
A agora eurodeputada sublinhou que as características do SNS estão constitucionalmente consagradas, embora reconheça que “a realidade é dinâmica e exige adaptações para responder melhor a um perfil muito diferente de necessidades”.
Mas, alertou, “a sua fragilização é a fragilização da política e da democracia. Portanto, é com muita preocupação que vejo essa erosão diária do nosso SNS”.
“Quero acreditar que até o Governo perceberá isso e será coerente, mais tarde ou mais cedo, naquilo que é a necessidade de infletir um determinado caminho”, sustentou.
Marta Temido reforçou que “os sistemas de saúde fortes ajudam as democracias a serem mais fortes” e afirmou que “não vê nada de bom a vir do desmantelamento das respostas públicas”.
“As respostas públicas são melhores que as privadas? São aquelas que temos em Portugal e não há nenhum sistema de saúde que faça uma mudança de público para privado ou de privado para público subitamente”, salientou.
Marta Temido lembrou a antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher que, nos anos 80, foi obrigada a vir a público a dizer: “o NHS connosco está em boas mãos”, perante o receio da população de que o sistema nacional de saúde pudesse ser posto em causa.
Helena Neves , da Agência Lusa
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