Diário de um pai em casa. Dia 25
De uma das janelas, na parte da frente do prédio onde vivo, no 3º andar, ao aproveitar uma pausa da tarde, escuto as notas de um saxofone. Ouço o timbre. Graves e agudos. Quase que sinto a respiração de quem assopra. Sopro e voz, tons rasgados e roucos, (growl).
É uma sonoridade que entra pelas frestas da janela e da porta da rua como se estivesse alguém a tocar o instrumento na casa de baixo. Puro engano. O epicentro do som está ao virar da esquina a uns bons 30 metros de distância e três andares abaixo. Vem de uma escola de música.
A clarividência com que se escuta pode ser explicada pela ausência de circulação de carros no bairro de Campo de Ourique. E, acima de tudo, pela inexistência de burburinho característico do final dos dias vindo das escolas que circundam a zona.
Já não me recordo quando tinha sido a última vez que tinha escutado o saxofone que animava a minha rua, em pontuais finais de tarde.
Antes desta pandemia que nos varre, uma placa “vende-se” anunciava que a acústica, muito provavelmente, seria empurrada para a outra freguesia. Sinceramente, não sei se foi esse o veredicto que o afastou. A placa lá continua. Parece não ser imune a crises de pandemia.
Nunca me deparei com o rosto de quem toca e ensina a tocar. Nunca o vi. Só o ouvi ao longo de um par de anos de convivência sem fala. Hoje, de novo.
Pensei indagar a razão deste regresso, mas limitei-me a abrir a janela. Para ouvir.
O Dó, Ré, Mi, Fá, Sol ... foi de pouca dura. Para pena minha. O agradecimento da pequena parte do “concerto” ao vivo é dado nestas palavras.
O “escritório” atraiu-me como um íman para a mesa com vista para as traseiras de um quarteirão que anda mais animado que nunca.
E aí, a música é outra. A começar pelo meu vizinho de baixo. House. House e mais House. A tarde toda. Horas a fio. Parecia musicalidade de uma só tecla, minuto após minuto, hora a hora. Pupurump... Pupurump... Pupurump (soa-me a isto). Perdoo-o, sem hesitações. Ele leva com muitos graves e agudos de quatro crianças e um casal o ano inteiro. Só de vez em quando é que “mete” música.
A cadência, que não se sai do ouvido (e continua a tocar) sente-se que vem do baixo dos meus pés. Sinto-os aos saltos.
Desespero. Espreito à janela e vejo um puzzle. Milhares de peças espalhadas numa mesa redonda que os vidros sem cortinados deixam ver. A avaliar pelo vazio de barulho na manhã, esta arte deve ter conhecido um substancial avanço antes do sol se colocar no ponto mais alto.
Ao contrário do homem do saxofone, conheço o meu vizinho de baixo, há uma dezena de anos. Escutamo-nos mutuamente. A música faz parte da sua vida. Desconhecia, no entanto, até esta pandemia, a queda para construir, pedaço a pedaço, castelos, cidades ou países.
Terá sido a covid-19 a responsável? Não sei, vou perguntar quando nos encontrarmos, por estes dias, nas escadas do prédio. Da parte da frente ou nas traseiras.
Uma nota final. Tenho visto muitos vizinhos à janela, quintais e terraços. Nenhum faz parte dos meus conhecimentos, à exceção de um casal de idosos de um prédio ao lado do meu.
São mais homens, que mulheres. A maior parte estende roupa. Escuto as cordas a esticar. A esticar a toda a hora. Será consequências da pandemia? Talvez. Será para continuar, no grito “há mais vida para além de ficar fechado em casa”? Veremos.
Música mesmo, só de um quintal restaurado por três rapazes. Dois prédios ao lado do meu. Ouvem música, leem, plantam legumes e bebem vinho. Nunca os tinha visto antes do novo coronavírus nos fechar em casa.
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