As primeiras 14 semanas de trabalho do português foram marcados pelo início de uma reforma institucional que pretende tornar a ONU mais eficiente, a continuação do conflito na Síria e alguns embates com a nova administração americana.
"Guterres causou uma primeira impressão muito positiva. Ele é muito previdente, dedicado ao seu trabalho e representa uma grande melhoria em relação a Ban Ki-moon", disse à Lusa o professor universitário Richard Gowan.
Gowan diz, no entanto, que "Guterres teve uns primeiro 100 dias muito difíceis, sobretudo devido à administração Trump."
"Ele está a tentar estabelecer-se num momento em que os EUA pedem grandes cortes ao orçamento da ONU. Muitos funcionários estão preocupados em saber se os seus empregos serão sacrificados. Diplomatas de outros países querem saber se ele vai enfrentar os EUA e criticar o presidente Trump em público, mas um grande embate iria causar-lhe um imenso problema político", explica o especialista.
Gowan acredita, porém, que "Guterres está a construir uma forte relação bilateral com [a embaixadora dos EUA junto da ONU] Nikki Haley e essa pode ser a chave do seu sucesso."
Jean Krasno, que liderou a campanha que tentou eleger uma mulher para o mais alto cargo diplomático do mundo, acredita que "até agora, o novo secretário-geral tem respondido aos desafios do trabalho."
"Ele tem vindo a nomear mulheres para posições de topo, talvez um pouco mais devagar do que esperávamos, mas o progresso para a paridade de género tem sido bom", defende.
A esse nível, Gowan explica que "apesar de Guterres gostar de tomar decisões e agir rapidamente, o sistema da ONU move-se devagar" e que, por isso, "ele ainda esta a tentar preencher muitos cargos seniores."
"O facto de que ainda não tem a sua equipa de conselheiros completa deve frustrá-lo", diz o especialista em assuntos da ONU no Conselho Europeu de Relações Externas.
Gowan acredita que "Guterres é mais feliz quando está a viajar e a ver o trabalho da ONU no terreno."
"Ele visitou locais em conflito como a Somália e o Iraque. Ele quer realmente ver o que os seus representantes estão a conseguir, e isso é imensamente encorajador", diz.
Jean Krasno diz que "além de todas as ameaças à paz internacional e segurança que a ONU enfrenta, o Secretário-geral tem de encontrar o passo certo para manter o equilíbrio entre os estados membros, sobretudo entre os membros permanentes do Conselho de Segurança."
"E é aí que terá de lidar com os meandros quixotescos da administração americana", avisa a especialista.
"Um bom começo"
Um relatório do Centro Internacional para Operações de Paz defende que António Guterres "teve um bom começo" nos seus primeiros 100 dias como secretário-geral da ONU, mas que "não teve um grande período de lua de mel."
"Guterres teve um bom começo. Nos primeiros 100 dias, provou ser politicamente astuto e um comunicador convincente. Está a envolver-se pessoalmente e quer tomar as suas próprias decisões em crises decisivas", indica o relatório.
O documento indica ainda que o português "não teve um grande período de lua de mel" porque "as implicações de uma presidência Trump acalmaram os ânimos daqueles que esperavam um reavivar da ONU" mas que continuam "as expectativas altas, talvez demasiado altas."
Assinado por Tanja Bernstein, uma diplomata de carreira que trabalhou para Ban Ki-moon, o documento defende que "ainda é demasiado cedo para [Guterres] colher os proveitos de muitas das iniciativas que lançou e das relações que desenvolveu com parceiros chave."
Desde que assumiu o cargo, o português tem reiterado a importância da prevenção de conflitos, colocou vários processos de reformas institucionais em andamento e viajou por vários países como o principal diplomata do mundo.
O relatório nota, no entanto, que apesar de ter anunciado em janeiro uma "plataforma de prevenção" e melhoria das capacidades de mediação, "ainda tem de revelar ideias concretas e propostas de como esta prevenção deve acontecer na prática."
Uma das grandes promessas de António Guterres durante a eleição foi uma reforma institucional para tornar a organização mais eficiente, e as mudanças começaram assim que tomou posse.
No dia 4 de janeiro, o português reconfigurou o seu gabinete para criar um comité executivo e decidiu localizar no mesmo espaço as delegações regionais dos Departamentos de Operações de Paz e de Assuntos Políticos.
O relatório indica que estas mudanças refletem a forma como Guterres vê o cargo - "mais voltado para o futuro, envolvido politicamente e aberto a novas ideias" - e refere que o responsável está a recorrer a uma variedade de novas fontes externas para desenvolver a sua estratégia.
"Isto foi recebido pela maioria como uma abordagem refrescante, mas alguns oficiais da ONU podem sentir-se rejeitados por não fazerem parte de um novo circulo mais próximo", explica.
Guterres lançou uma série de outras reformas, que precisam ser aprovadas pelos estados-membros na Assembleia Geral, e que incluem os sistemas de paz e segurança, de gestão, de respostas a exploração sexual e abuso, e paridade de género.
Uma das propostas mais visíveis é a criação de um escritório de contra terrorismo, liderado por um vice secretário-geral, que concentraria os esforços da ONU na luta contra o terrorismo global.
O relatório nota que as propostas relativas à exploração sexual e abuso "receberam respostas mistas", sobretudo de países que seriam prejudicados financeiramente, e que tantas iniciativas "demonstram que ele está ansioso por conseguir mudança”.
Em relação às nomeações, a autora nota que Guterres nomeou pessoas de países menos habituais (como o Brasil, Chile, Nigéria e Coreia do Sul), mas que os poderosos cinco países com assento permanente no Conselho de Segurança continuam a dominar posições chave.
Quanto à sua atuação política, o relatório diz que "o tempo dirá se Guterres é capaz de acomodar as preocupações dos estados membros enquanto mantém uma certa independência na forma como lidera a organização”.
No documento, é recordado o episódio em que a secretária-executiva da Comissão Económica e Social para a Ásia e o Pacífico (ESCAP) da ONU se demitiu depois de o secretário-geral lhe pedir que retirasse um relatório em que acusava Israel de cometer "apartheid" contra os palestinianos.
Um dos maiores desafios neste equilíbrio será a relação com a administração de Donald Trump, defende o relatório. "Guterres também tem de andar sobre esta linha em que fala contra políticas dos EUA que considera contra os princípios e normas da ONU (como quando falou contra a ação executiva de Trump de entradas no país) e não alienar o seu principal contribuinte financeiro e ator político", explica Tanja Bernstein.
OS EUA são o maior contribuinte da organização, pagando 22 por cento dos 5,4 mil milhões de dólares (5,1 mil milhões de euros) do seu orçamento principal e 28,5 por cento dos 7,9 mil milhões (7,4 mil milhões de euros) do seu orçamento de manutenção de paz.
A proposta de orçamento da Casa Branca (que pede um corte de 28 por cento para a diplomacia e ajuda internacional, um limite de 25 por cento na contribuição para operações de manutenção de paz e eliminação de todas as contribuições para iniciativas ligadas as mudanças climáticas) coloca os próximos desafios que Guterres terá de enfrentar.
"Quanto mais inovação e reformas de contenção de custos Guterres mostrar, mais credibilidade ganhara a ONU, também em Washington", conclui o relatório.
Comentários