Um país onde a desconfiança face às instituições políticas pode confirmar a eleição de um “candidato atípico”.
País com 45 milhões de habitantes às portas da União Europeia (UE), a Ucrânia, ex-república soviética, é hoje considerado um dos Estados mais pobres da Europa.
O ator e humorista Volodymyr Zelensky, sem experiência política, permanece à frente das sondagens após a sua clara vitória na primeira volta em 31 de março (30%), face ao Presidente Petro Poroshenko (16%), que tenta a reeleição. Uma vantagem que se ampliou: num estudo divulgado terça-feira estava creditado com 72% das intenções de voto, contra 25% para o seu rival.
Caso se confirmem estas novas projeções, o comediante pode tornar-se no dirigente de um país confrontado com desafios colossais, em particular a guerra no leste, as grandes dificuldades económicas e o combate à corrupção.
Zelensky poderá ainda reforçar a sua votação nas regiões russófonas do centro e sul da Ucrânia, incluindo a sua região de Dnipropetrovsk, onde obteve o melhor resultado na primeira volta (45% contra 30% no conjunto do país).
No passado, estas regiões votaram maioritariamente nos candidatos pró-Kremlin, mas após a anexação da península da Crimeia por Moscovo e a rebelião separatista pró-russa no leste, adotaram uma posição mais cautelosa. Apesar de recusarem uma “integração” na Rússia, as populações locais sentem-se mais próximos de Zelensky, com tradições russófonas.
A crise económica também atingiu estas regiões, em particular as suas fábricas em declínio e muito dependentes do comércio com a Rússia. Uma sondagem recente referiu que os apoiantes de Zelensky apreciam sobretudo a sua personalidade, mas estão relativamente mal informados sobre as suas respostas à crise que o país atravessa.
O ano passado foi caracterizado por um agravamento das tensas relações entre Kiev e Moscovo. A Ucrânia terminou 2018 sob regime de lei marcial, instaurada no início de dezembro e em vigor durante um mês na sequência do incidente no Mar Negro (estreito de Kerch) entre as marinhas russa e ucraniana, com a detenção de dezenas de ucranianos.
A instauração da lei marcial, mesmo que simbólica, teve uma dimensão política.
Poroshenko manteve duras negociações com o parlamento para a aprovação da medida, e apenas garantiu a sua aplicação por 30 dias (pretendia dois meses) e limitada a dez regiões do leste do país.
Parte da oposição suspeitou que o líder ucraniano, eleito em 2014 após a revolução “pró-ocidental” do Maidan, pretendesse aplicar a medida para fins eleitorais, dando-lhe um estatuto de chefe de guerra e permitindo-lhe de novo envergar o uniforme militar quando se aproximavam as presidenciais e as legislativas, estas marcadas para outubro de 2019.
O incidente no estreito de Kerch fez recordar o conflito que se prolonga há cinco anos no leste da Ucrânia entre Kiev e os separatistas pró-russos da região do Donbass, que Poroshenko não conseguiu solucionar.
Ao assumir-se como “homem forte” do país e o único com capacidade para enfrentar a Rússia, Poroshenko não deixou de acusar o seu rival na segunda volta de ausência de experiência política, de evitar o debate público — por fim previsto para hoje no estádio Olímpico de Kiev e considerado decisivo em particular para o presidente cessante –, ou de ser o “candidato de Putin”.
Com fracos resultados nas sondagens, o Presidente também tentou beneficiar politicamente da decisão do patriarcado de Constantinopla, que no outono reconheceu a independência do patriarcado de Kiev face ao de Moscovo.
Um sucesso que não fez esquecer os fracassos da presidência Poroshenko, que subiu ao poder na sequência da revolta de Maidan (Euromaidan) nos inícios de 2014, quando o anterior Governo do ex-Presidente Viktor Yanukovych anunciou em novembro de 2013 que não assinaria o Acordo de Associação com a União Europeia, pretexto para o início dos protestos.
Após ter evitado o colapso do país em 2014-2015 (perda da Crimeia, guerra no leste com um balanço de 13.000 mortos e milhares e feridos e refugiados), Poroshenko falhou em áreas decisivas como a reforma do Estado e o combate à corrupção.
O Acordo de Associação com a UE acabou por entrar em vigor em 2017. E apesar de a frustração se ter imposto ao entusiasmo inicial, os defensores do atual regime de Kiev argumentam que a “revolução pró-europeia” de 2014 permitiu ao país distanciar-se do modelo autoritário da Rússia, onde Yanukovych permanece, e aproximar-se dos padrões defendidos por Bruxelas.
No entanto, e mesmo que Kiev reivindique uma “nova trajetória” para o país, 2018 ficou ainda assinalado por renovados ataques de Poroshenko, apoiado pelo procurador-geral, contra o Gabinete nacional anticorrupção, a única instituição que escapava ao controlo do poder político.
Por fim, apenas decidiu legitimar um tribunal anticorrupção, que deverá aprovar diversas reformas decisivas nesta área, após os fracos resultados eleitorais na primeira volta das presidenciais.
O escândalo em torno de uma rede de corrupção envolvida na aquisição de armamento militar onde alegadamente participaram colaboradores do Presidente também contribuiu para o seu ocaso eleitoral, mesmo que Poroshenko tenha negado qualquer envolvimento.
Diversos grupos militantes da sociedade civil também sentiram o autoritarismo e a intimidação impostos pelo regime. A morte da ativista Kateryna Gandziouk, atacada com ácido na sua cidade de Kherson no início de novembro, suscitou uma forte emoção no país e um crescente descrédito da elite dirigente, mas também revelou o poder do mundo do crime em certas regiões ucranianas.
Poroshenko também se confrontou com uma difícil situação económica. Os bons resultados da agricultura e o desenvolvimento exponencial do setor informático não conseguiram terminar com a pobreza de importantes camadas da população, agravada por diversas medidas de cortes orçamentais ordenadas pelo FMI.
O crescimento de 3,5% em 2018 não permitiu compensar as perdas provocadas pela anexação da Crimeia e a guerra no leste.
O Ocidente prossegue o seu apoio à liderança ucraniana face à “ameaça da Rússia”, e a chanceler Angela Merkel recebeu Poroshenko em plena segunda volta, à semelhança do Presidente francês Emmanuel Macron, que convidou os dois candidatos para o Eliseu.
Neste cenário, a aproximação à UE, tema consensual nas duas campanhas, e a integração na NATO, desejada por Poroshenko, vão também permanecer temas de atualidade neste país fraturado.
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