Introdução
Adormecer as plantas
Não é todos os dias que podemos apresentar um truque científico diante de um grande e verdadeiramente surpreendido número de pessoas. No dia 9 de agosto de 2019, numa sala de conferências do arquipélago das Maurícias, consegui espantar uma plateia com pouco mais do que uma campânula de vidro, um pedaço de algodão e algum anestésico. O meu anestésico de eleição é um dos que os veterinários utilizam nas cirurgias para adormecerem, momentaneamente e em segurança, cavalos, gatos e cães. Com bastante probabilidade, muitas das pessoas que assistiam teriam já observado um animal de estimação a ser anestesiado e a adormecer tranquilamente no veterinário, embora nunca tivessem visto o que ali se passou.
Era o cenário perfeito para algo incomum e, à primeira vista, impossível. Dado o seu isolamento, a ilha Maurícia faz parte de um arquipélago do oceano Índico outrora repleto de plantas e animais maravilhosamente estranhos. Está localizada suficientemente perto da África continental e da ilha de Madagáscar para que um eclético conjunto de espécies tivesse conseguido percorrer a distância, mas afastada o bastante para que, uma vez instaladas, estas criaturas tivessem desenvolvido aventuras estranhas e evolucionárias próprias. Daqui, resultam as tartarugas gigantes ambulantes, os arbustos boucle d’oreille com flores vermelho-sangue, as jiboias escavadoras, a etérea fleur de Lys e, claro, a enigmática ave dodo. Desde que os europeus chegaram a esta ilha desabitada no final do século XVI, muitas destas espécies perderam-se ou estão ameaçadas. Efetuei esta viagem por diversos motivos. O primeiro foi um convite para discursar numa conferência especial organizada pelo Instituto Bon Pasteur*. O segundo foi procurar as dezoito espécies de videiras silvestres que se desenvolvem apenas na ilha Maurícia para as utilizar na minha investigação no Minimal Intelligence Laboratory (MINT Lab), em Múrcia, Espanha. Estas cepas não têm sido tão afetadas como as espécies autóctones; são habitantes selvagens das pequenas áreas que restam das florestas naturais e que outrora se estendiam pela Maurícia**. Para mim, apresentavam um irresistível potencial natural, de tal modo que me dispus a percorrer meio mundo para ir ao seu encontro.
A minha palestra decorreu ao anoitecer; por isso, nesse dia, já tinha saído em busca das videiras acompanhado por Jean-Claude Sevathian, um especialista e tratador das plantas raras da ilha. O seu nome foi, inclusivamente, atribuído a algumas subespécies das plantas autóctones. Do jipe em andamento e com a mais incrível precisão, os seus olhos conseguiam distinguir as formas sinuosas das videiras no meio da densa folhagem da floresta tropical. Algumas das espécies que procurávamos apenas poderiam ser encontradas nas reservas mais remotas e densamente florestadas, pelo que nos aventurávamos num território raramente explorado pelos humanos. Enquanto acelerávamos por entre o mato, eu não conseguia deixar de pensar num jovem Charles Darwin em busca de espécimes de plantas em regiões insulares pouco conhecidas, embora aí tivesse chegado de navio e não no conforto de uma viagem aérea. Embrenhávamo-nos pela espessa folhagem verde e imaginava-o a olhar pela primeira vez para espécies que nunca imaginara existirem. Darwin considerava as plantas e os animais partes integrantes do mesmo ambiente, indissociáveis e em profundas interações com os organismos que os rodeiam. Para si, um animal ou uma planta apenas poderia ser compreendido se considerado neste âmbito. Um espécime retirado para o ambiente esterilizado de um laboratório seria não mais do que uma parte do seu cenário global. Se conseguíssemos ver a vida, nem que fosse um pouco melhor do que como Darwin o fez, a nossa experiência seria muito mais rica.
Eu também trazia uma terceira intenção para estas investigações. Procurava um paciente adequado para a minha demonstração anestésica. Teria de ser conhecido da plateia, que coubesse facilmente na minha campânula e que fosse sensível à anestesia. No meio dos locais sobrelotados com as carapaças das tartarugas gigantes das ilhas Maurícias, encontrei alguns exemplares perfeitos. Pareceram-me bastante tímidos e retraídos quando lhes toquei, mas deixei-os em paz durante a tarde para lhes permitir alguma descontração.
Naquele fim de tarde, apresentei-me à plateia transmitindo-lhe o que pretendia fazer ao organismo pousado ao meu lado na mesa. Sorri para dentro perante o misto de rostos trocistas e céticos que me observavam. Assegurei-me de que todos conseguissem ver quando friccionei, suavemente, o paciente e este se retraiu como sucedera na floresta. Em seguida, peguei num pedaço de algodão, embebi-o numa quantidade cuidadosamente aferida de anestésico, deixei-o ao lado do sujeito experimental desta demonstração e pousei a enorme campânula sobre ambos. Esta campânula não estava destinada a funcionar como um adereço rétro nem a evitar que o sujeito fugisse; eu teria de saturar o ar do interior com o anestésico. Naquelas circunstâncias, para o aplicar como faria um veterinário no caso de um cão, não poderia recorrer a uma máscara de gás.
Eu sabia que o anestésico demoraria a fazer efeito, tendo praticado algumas vezes no meu laboratório para garantir o exato controlo do tempo e das quantidades. Enquanto prosseguia a palestra, observava todos os pares de olhos da plateia a saltarem entre mim e a campânula, procurando sinais de que a anestesia resultara. Pouco menos de uma hora depois, chegava a grande revelação. Pedi a um voluntário que tentasse despertar o meu exemplar, optando por uma senhora de entre a floresta de mãos erguidas. Esta levantou -se, revelando uma figura surpreendentemente alta e esguia, e avançou. Ergui a campânula de modo que ela conseguisse tocar no sujeito ao de leve com um dedo, esperando, certamente, que este se retraísse como antes. Porém, nada sucedeu, mesmo quando tentou uma segunda vez. Estava anestesiado. A plateia manteve -se alguns momentos em silêncio antes de proferir exclamações de espanto e de se ouvirem aplausos em todo o auditório.
Tudo isto poderá parecer agora demasiado estranho para surpreender alguém. Gostaria que tentássemos adivinhar as características do meu exemplar daquela noite. Não seria, por certo, um mamífero, muito menos um animal. Com efeito, tratava-se de uma planta, de uma Mimosa pudica (ou dormideira) para ser preciso. Esta «planta sensível» foi trazida das Américas e, atualmente, cresce de modo bravio em toda a ilha Maurícia.
Muitas pessoas conhecem a mimosa por causa da sua encantadora «timidez»: quando lhe tocam, retrai as folhas de encontro ao caule. Não se trata apenas de algo engraçado para os humanos, é uma medida eficaz contra os devoradores de plantas e complica a vida aos herbívoros que pretendem alimentar-se com as suas folhas. Como é natural, esta planta não é tão «tímida» como a imaginamos; esta retração é uma astúcia da evolução destinada a pressentir e evitar que um predador próximo a possa devorar. A anestesia anulou por completo esta capacidade de reação da planta, permanecendo passiva quando lhe tocámos, para grande surpresa dos que assistiam.
Meses mais tarde, apresentei o mesmo truque em circunstâncias menos formais, num bar tradicional dos anos oitenta, Planta Baja, em Granada. Ocorreu no âmbito de um certame assinalado por música ao vivo e palestras, designadas por Psycobeers e apresentadas em intervalos regulares por alunos da Universidade de Granada. Depois de a banda pop acústica Cosas Que Hacen Bum ter interpretado um tema com o muito adequado título Sin Prisa, un Jardín [Sem pressa, Um Jardim], dirigi-me ao equipamento que antes instalara no palco sobranceiro àquela alvoroçada ambiência. Desta feita, utilizei a mais bravia planta carnívora do mundo, uma apanha-moscas, ou dioneia (Dionae muscipula). Estas plantas possuem folhas especiais que se fecham sobre os inocentes insetos que se aproximam delas. Depois, exalam enzimas para o interior da cavidade de modo a poderem digerir a carcaça. Muitas pessoas estarão familiarizadas com o fascinante desencadear destas armadilhas, que mais se assemelham a bocas risonhas com dentes espigados. Contudo, a reação perante o movimento da planta nada foi comparada com a do público quando a anestesiei. Desta vez, gravei tudo com uma câmara para que aqueles que estivessem no bar a beber algo pudessem assistir depois ao que tinha ocorrido pouco antes. Também levara comigo elétrodos de superfície para aferir a atividade elétrica das membranas das células excitáveis da armadilha. No início da palestra, o sinal elétrico exibia picos de voltagem sempre que lhe tocava, um claro sinal da atividade da vida interior da planta, como um ECG que assinala o ritmo cardíaco de um paciente humano. Passada uma hora, pedi a um voluntário que tocasse na armadilha da dioneia. A planta não se mexeu. O ecrã exibia uma linha contínua: os picos de atividade elétrica que surgiam sempre que lhe tocava antes da anestesia haviam desaparecido.
Poderá questionar-se como é que a anestesia tornará, exatamente, estas plantas tão pouco reativas. Abordá-lo-emos num capítulo posterior dedicado às atividades elétricas invisíveis das plantas e a todas as formas pelas quais estas utilizam complexas redes de informação rapidamente transmitida ao longo dos seus organismos. Por agora, concentremo-nos no facto de estas capacidades poderem ficar em suspenso com o mesmo anestésico que adormece um gato – ou, a propósito, qualquer um de nós. As folhas da mimosa e as armadilhas para moscas da dioneia não são as únicas a perder as suas admiráveis capacidades sob efeito da anestesia. Sob a sua influência, todas as plantas interrompem o que quer que estejam a fazer, seja retrair as folhas, dobrar os caules ou o processo da fotossíntese. Até as sementes interrompem a germinação. Em suma, a anestesia suspende a reação das plantas ao seu ambiente de todas as formas habituais.
Esta similitude é surpreendente considerando que as linhagens que deram origem aos animais e às plantas se separaram há 1,5 mil milhões de anos. Estamos em reinos completamente diferentes e, ainda assim, ficamos «entorpecidos» com os mesmos fármacos. Para um contexto mais global, até as bactérias podem ser anestesiadas. Tais organismos nem sequer estão no mesmo domínio que nós, o mais alto nível da divisão patente na árvore da vida. Todavia, estes organismos unicelulares, como as células do nosso corpo e as das plantas, são sensíveis a um desligamento momentâneo de modo idêntico. Até as organelas, do interior das nossas células e que libertam energia – as mito-côndrias –, bem como os cloroplastos fotossintetizantes do interior das células das plantas, são sensíveis aos anestésicos. Estar vivo é ser suscetível à anestesia.
Poderá ser muito mais exato afirmarmos que ficamos entorpecidos com os mesmos fármacos que afetam as plantas, pois, na verdade, as plantas criam estes químicos para si próprias. Para adormecermos um mamífero por momentos, ministramos-lhe uma dose de um anestésico sintético. Contudo, as plantas sintetizam uma vasta gama destes químicos. Estas substâncias são libertadas em alturas de tensão: quando uma planta é ferida, por exemplo, liberta substâncias químicas anestésicas, como o etileno, nos seus tecidos. Quando uma raiz fica desidratada, liberta três anestésicos: o etanol, o etileno e o éter divinílico. Ainda não se conhece bem o motivo de o fazerem. Alguns ajudam a planta a ativar medidas de defesa, ao passo que os propósitos dos outros são menos evidentes. Talvez, como um ser humano que bebe algo para descontrair após um dia agitado, estejam apenas a recompor-se. Algumas destas substâncias são libertadas em quantidades tais que chegam a afetar a atmosfera terrestre. Faríamos bem em pensar nas implicações dos gases com efeito de estufa libertados pelas plantas e algas sob tensão.
Os humanos utilizaram algumas destas substâncias químicas durante muito tempo: mastigavam as folhas de coca dadas as suas propriedades anestésicas durante milhares de anos antes de a cocaína ser isolada e transformada na primeira anestesia local e, mais tarde, num estupefaciente. Encontramos o timol das folhas de tomilho no nosso produto para gargarejar, sendo o eugenol do óleo de cravo utilizado como anestésico dentário local9. Isto para não mencionar a vasta gama de outras substâncias produzidas pelas plantas e que utilizamos, intencionalmente, para influenciar a nossa mente e o corpo: o tabaco, o etanol, a aspirina, a marijuana, as folhas de chá com muita cafeína e os grãos de café.
* O Instituto Bon Pasteur (IBP) é uma empresa privada cuja única atividade é o centro de formação e serviço GEM para a Geografia Médica com a qual o MINT Lab desenvolvia uma colaboração. A diretora é Zoë Rozar, a minha anfitriã na Maurícia.
** Restam apenas cerca de 2% das florestas autóctones saudáveis da Maurícia, a maioria em regiões remotas e menos acessíveis da ilha e das pequenas ilhas adjacentes.
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