A European Sleeper é uma espécie rara de empresas ferroviárias na União Europeia. É um dos poucos operadores privados de comboios noturnos: na mesma situação, apenas estão a sueca Snälltåget (detida pelo grupo Transdev) e a checa RegioJet (do milionário local Radim Jančura). Apesar de não ter a ajuda do Estado, a empresa fundada na Bélgica e nos Países Baixos conseguiu entrar no mercado em maio de 2023 graças ao apoio de mais de 4000 pequenos investidores. Dois anos antes, obteve meio milhão de euros em apenas 15 minutos e arrecadou mais dois milhões no ano seguinte.

Atualmente, a European Sleeper realiza, durante todo o ano, a viagem de Bruxelas a Praga, três vezes por semana, nos dois sentidos, passando por Amesterdão e Berlim. Em fevereiro e março, serão feitas sete viagens entre Bruxelas e Veneza, passando por Innsbruck, para atrair os turistas da neve. E para 2027 já está em preparação o comboio entre Amesterdão e Barcelona. Para ajudar no crescimento, há obrigações para investidores privados com uma taxa de juro de 10% e ainda passes para viagens ilimitadas durante um, três ou 12 meses.

Em entrevista ao SAPO24, Chris Engelsman, um dos dois fundadores da European Sleeper, explica quais são os desafios de uma empresa privada neste segmento de negócio e admite o interesse numa parceria com a CP para fazer comboios noturnos para Portugal.

Porque começaram a European Sleeper como uma cooperativa, algo que não é habitual em operadores ferroviários?

Há cinco anos, eu e o meu outro parceiro, o Elmer van Buuren, sentíamo-nos muito frustrados com todos os cancelamentos de comboios noturnos das principais empresas ferroviárias na Europa. Não víamos qualquer esforço em promover estes serviços e em melhorá-los. Sempre acreditámos neste produto e fizemos um grande lobby para que estes serviços voltassem. Mas depois começámos a olhar para o facto de os comboios internacionais estarem em mercado aberto [qualquer operador ferroviário licenciado pode apresentar uma proposta]. E, em vez de apenas falarmos, poderíamos passar a mostrar alguma coisa. Era uma grande oportunidade a nível da sustentabilidade e, como empresários, acreditamos que é possível realizar estes comboios com lucro. Cedo apercebemo-nos de que o público em geral tem grande interesse pelos comboios noturnos. É um produto popular e que agrega o revivalismo com a preocupação pela mobilidade sustentável. Tivemos reações muito positivas à nossa proposta e percebemos que poderíamos lançar um projeto a partir de uma comunidade. Poderíamos ser uma empresa com base nos nossos fãs. Por isso, começámos a cooperativa e assim conseguimos angariar mais facilmente pequenos investidores, sem termos de recorrer constantemente a um notário.

"Nunca pensámos que a nossa empresa iria atingir esta dimensão"

Quando se lançaram no mercado esperavam ter tantos investidores? Fecharam a primeira ronda de investimento em poucos minutos.

Atualmente temos mais de 4000 pequenos investidores e lançámos obrigações (bond loands) para apoiar o nosso crescimento. Vemos interesse da parte de investidores individuais e de pequenas empresas que querem estar envolvidas. Quando começámos, não esperávamos ter tanto apoio. Temos este apoio porque trata-se de um comboio noturno e porque somos uma pequena empresa ferroviária, com dois fundadores, a concorrer com as grandes empresas ferroviárias. Isso atrai muita simpatia por nós, acreditamos. Nunca pensámos que a nossa empresa iria atingir esta dimensão.

No momento em que falamos, é possível investir na empresa? 

Neste momento, não estamos a vender certificados de ações mas temos obrigações disponíveis. Faz mais sentido para atrair investidores nesta altura. Estamos mais focados na liquidez neste momento para podermos ser rentáveis e pensarmos num crescimento mais sustentável. Depois disso, quando quisermos comprar o nosso próprio material circulante, vamos querer atrair investidores maiores. Estamos a falar de montantes entre 40 e 60 milhões de euros. 

"A procura não é um problema"

Várias startups ferroviárias não têm sobrevivido ao mercado. O que fazem de diferente?

Temos estado em contacto com os outros projetos. Desde o início decidimos que, tão cedo quanto possível, tínhamos de mostrar um protótipo de comboio noturno. Não foi uma decisão fácil por causa da escassez de material circulante: é muito difícil encontrar carruagens para comboios noturnos porque foi um segmento de mercado completamente negligenciado pelos maiores operadores ferroviários durante décadas. Começámos por alugar carruagens e mostrar aos investidores que podíamos pôr em marcha um comboio noturno. Arriscámos porque tivemos de alugar carruagens com compartimentos de seis camas, um conceito um pouco antigo. As carruagens-cama, por exemplo, são de 1956, o que acarreta maiores custos de manutenção e de fiabilidade. A outra hipótese era apresentarmos um documento, fazer reuniões com potenciais investidores e não teríamos qualquer protótipo para mostrar. Estamos muito contentes com a nossa decisão e ajuda muito nas conversas já termos um produto a funcionar.

É possível dizer que, atualmente, os destinos são o protótipo e que ainda está para vir a verdadeira rede de viagens da European Sleeper?

As nossas rotas são bastante populares e estão quase a tornar-se rentáveis, com as receitas a crescerem constantemente. No Verão, tivemos muita procura, sobretudo às sextas. Isto prova que a procura não é um problema para as nossas operações. Estas rotas não são um protótipo e vão manter-se nos próximos anos. Também gostávamos de operar diariamente, porque ter viagens três dias por semana pode tornar-se um pouco confuso para os nossos passageiros e fá-los planear demasiado antes de comprar bilhetes. Para o futuro, estamos muito entusiasmados com a nossa rota para Barcelona e estamos a trabalhar nisso.

"Lisboa não é um destino prioritário para nós mas...quem sabe?"

Tem mencionado várias vezes a escassez de material circulante. Como vão expandir a rede tendo em conta estas dificuldades?

Em Fevereiro e Março vamos fazer uma rota temporária entre Bruxelas e Veneza porque temos outros serviços que não são realizados nessa altura, o que liberta material circulante. Vai ser um bom teste, que pode abrir-nos outras possibilidades. As carruagens para o Bruxelas-Veneza serão depois usadas noutras rotas no resto do ano. Para fazermos as viagens até Praga e Barcelona precisamos de mais carruagens, mais modernas, confortáveis e com outro conforto. Temos um plano para comprar carruagens-salão em segunda mão e depois recuperá-las e convertê-las em material para comboios noturnos. Só depois disso, por exemplo, podemos lançar a viagem para Barcelona, de 16 horas a partir de Amesterdão.

Ou seja, ainda não têm previsão de quando vão ter os comboios noturnos para Barcelona?

O mais expectável é que comecemos em 2027; para 2026 é muito improvável a não ser que as conversações com investidores e com as oficinas sejam rapidamente concluídas. Queremos que esta rota esteja disponível todo o ano.

O que os impede de prolongar de Barcelona para Madrid e, depois, Lisboa ou Porto?

A distância a partir de Amesterdão seria demasiado grande, pelo que mais valeria criar uma rota a partir de Barcelona para Portugal. Lembro-me de ter viajado no Sud Express, entre Hendaye e Lisboa. É mesmo triste que não façam mais esse comboio. A partir de Paris, seria fácil chegarmos a Barcelona. Para continuarmos até Lisboa, teríamos de trocar as carruagens.

Considerariam uma parceria, por exemplo, com a CP para terem um comboio noturno, considerando que já têm experiência no mercado?

Isso seria bom. Será que nos pode dar o contacto da CP? Gostaríamos de estar em contacto com operadores ferroviários nacionais e de fazer parcerias com eles. Estamos em diálogo com os suíços da SBB, por exemplo. Atualmente, o maior problema é o mercado francês, pois são muito burocráticos. Lisboa não é um destino prioritário para nós mas...quem sabe?

Quais são os outros desafios à atividade diária?

A maneira como trabalham os gestores de infraestruturas e a falta de coordenação a nível internacional, prejudicando bastante o cumprimento dos horários ou mesmo a realização dos comboios quando há obras na via. Na Alemanha, por exemplo, não notamos grande planeamento e não há previsão do impacto dos trabalhos. Não estão a fazer bem o seu trabalho. Na véspera desta entrevista, por exemplo, tivemos de mudar uma das paragens em Berlim e tivemos de arranjar maneira de comunicar com 40 passageiros. Foi simplesmente caótico. Os canais de venda também são um problema: a CZ, da Chéquia, vende perfeitamente os nossos bilhetes; na Alemanha, a Deutsche Bahn não faz isso. É um claro protecionismo apesar de haver uma regulamentação europeia para abrir as plataformas de bilhética a todas as empresas. Até ponderámos apresentar uma queixa, mas consome tanto tempo e recursos que não vale a pena. A FlixTrain está na mesma situação do que nós mas não opera comboios noturnos.

Apesar disso, conseguiram fechar uma parceria com a EuRail, a entidade que gere o passe de Interrail.

Sim, e está a correr bastante bem. Também vendemos os nossos bilhetes na Omio e na Trainline.

"Será que nos pode dar o contacto da CP? Gostaríamos de estar em contacto com operadores ferroviários nacionais e de fazer parcerias com eles"

Quando começaram, não tinham carruagem-restaurante. Este ano, introduziram essa opção. Foram influenciados pelos passageiros?

Muita gente nos disse que seria importante termos comida a bordo. Em outubro, fizemos um projeto-piloto, com a incorporação de uma carruagem-restaurante em 12 viagens. O problema com a carruagem-restaurante é torná-la rentável por si própria, só com a venda de refeições. O aluguer desta carruagem é caro e os funcionários só para este serviço também são um custo para nós. No entanto, encontrámos algumas antigas carruagens-restaurante da DB que têm um salão com lugares sentados e assim conseguimos equilibrar as contas: por exemplo, vendemos lugares entre Bruxelas e Amesterdão. Isso torna a carruagem quase lucrativa. E percebemos que termos esta opção traz-nos bastante valor. As pessoas têm ficado muito contentes com esta opção. Cria-se uma boa atmosfera nesta carruagem. [Já depois da gravação desta entrevista, a European Sleeper anunciou o regresso da carruagem-restaurante para os próximos meses]. 

Quais as rotas para 2025?

O nosso comboio mais constante é o Bruxelas-Praga, que funciona todo o ano três vezes por semana nos dois sentidos. Em fevereiro e março, vamos ter sete viagens entre Bruxelas e Veneza via Innsbruck e Colónia, em parceria com um parceiro italiano. Será um projeto-piloto. Gostaríamos de fazer esta rota durante todo o Inverno. Também adoraríamos fazer comboios para a Escandinávia mas, primeiro, temos de começar o nosso serviço para Barcelona.

Quando é que a empresa vai dar dividendos aos investidores?

Esperamos atingir, pelo menos, o equilíbrio financeiro (breakeven) já em 2025. Os dividendos vão ter de esperar e dependem de uma decisão da nossa assembleia-geral. Atingindo o breakeven em 2025 e os lucros em 2026, faz sentido reinvestir os nossos ganhos no crescimento da empresa.