O país vivia, então, em maioria absoluta do PSD, as economias europeias começavam a ser afetadas por uma crise, e a popularidade de Cavaco Silva, primeiro-ministro, davam os primeiros sinais de quebra, após oito anos de poder.
Este tipo de debate foi justificado como uma forma de fazer um maior escrutínio parlamentar à atividade do executivo, e inspirado, em parte, pelos discursos do estado da União dos presidentes dos Estados Unidos, numa altura em que eram escassos os debates com o chefe do Governo na Assembleia da República.
Alterado o regimento da Assembleia em 1992, depois das queixas dos partidos da oposição de que Cavaco ia poucas vezes ao parlamento, o primeiro debate do estado da nação, porém, só aconteceu no ano seguinte, em 01 de julho de 1993.
Cavaco Silva criticou o "pessimismo decadentista de alguns políticos com responsabilidades" por quererem incutir na sociedade uma "descrença fatalista".
“Aqueles que se recusam a reconhecer a transformação positiva de Portugal" e fazem "cenários negros, miserabilistas ou fatalistas, geralmente por motivos de mero jogo político", estão a cometer "um ato de miopia", acusou.
O chefe do Governo usou números e mais números, fez comparações estatísticas entre 1992 e 1985, ano em que o PS estava no Governo em aliança com o PSD, no famoso Bloco Central. O número de jovens a estudar no ensino superior, por exemplo, duplicou.
O discurso inicial de Cavaco tinha 43 páginas e a primeira discussão sobre o estado da nação ocupou toda a tarde de trabalhos na Assembleia da República, das 15:25 às 20:50, mais de cinco horas.
O primeiro comentário do PS coube ao deputado António Almeida Santos que atirou uma "farpa", entre aplausos dos deputados socialistas: "V. Ex.ª acabou de nos ler um discurso cujo tamanho só é ultrapassado pela deceção. Diria que, se a crise que assola o país fosse de palavras, teria morrido neste momento."
Cavaco responde com ironia e prestou-lhe “a homenagem”: “Ninguém consegue ser superior ao sr. deputado Almeida Santos em termos de manipulação das palavras”, a “tentar enganar, às vezes, a audiência.”
Mas a resposta de fundo, porém, foi dada pelo deputado António Guterres, secretário-geral do PS há três anos e que estava a dois das legislativas que deram a vitória aos socialistas.
Cavaco, sintetizou Guterres, estava “duplamente derrotado”, perante “si próprio e perante o país”.
“Em primeiro lugar, pelo contraste gritante entre a realidade atual e o que, até há bem pouco tempo, nos prometia; entre as expectativas que criou com leviandade para se fazer eleger e o sentimento generalizado de frustração que, boje, aflige os portugueses. (…) Mas derrotado, também, por ter perdido as duas principais batalhas da vida portuguesa: a batalha económica e social do emprego e a batalha política da transparência”, disse.
António Guterres acusou ainda o primeiro-ministro de ter esgotado “o crédito que os portugueses lhe manifestaram", demonstrando que "só sabe navegar com o vento a favor".
"Ainda tem dificuldades em admitir que se engana, mas, seguramente, já começou a ter dúvidas", ironizou.
O parlamento em 1993 era muito diferente do atual e os protagonistas também.
Na extrema esquerda do hemiciclo sentava-se Mário Tomé, militar de Abril e eleito pela UDP, partido mais tarde na origem do Bloco de Esquerda.
Do lado oposto, Manuel Sérgio, professor universitário, fazia o seu único mandato pelo Partido da Solidariedade Nacional (PSN), o chamado "partido dos reformados".
No hemiciclo sentava-se ainda Diogo Freitas do Amaral, que nessa altura já tinha abandonado o CDS, e era deputado independente.
No PSD, o líder parlamentar era Duarte Lima, mas neste debate intervieram também Rui Rio (atual presidente do partido) e José Pacheco Pereira, vice-presidente da bancada.
Na bancada do CDS sentavam-se Adriano Moreira, mas também um jovem deputado, António Lobo Xavier, que elogiou o “bom hábito democrático” do debate do estado da Nação, e sublinhou alegados excessos do cavaquismo em 1993: “as forças de bloqueio, foi a querela inútil e perigosa com o sr. Presidente da República [Mário Soares], foi a proeza extraordinária de por os magistrados em greve, foram as crispações a propósito da corrupção, do segredo de Estado.”
À esquerda, o PCP teve como figuras do debate Carlos Carvalhas, que já sucedera a Álvaro Cunhal como secretário-geral do PCP, mas também Octávio Teixeira e João Amaral, que mais tarde se tornou crítico.
Carvalhas, por exemplo, questionou o primeiro-ministro sobre se reconhecia ou não que, “fruto de uma política errada e injusta, há hoje milhares de reformados numa situação dramática” ou que “há hoje milhares de jovens que não encontram saídas profissionais”.
E Freitas do Amaral perguntou se Cavaco poderia indicar “quais são as grandes linhas da reforma do Estado providência que as circunstâncias impõem”, anotando a crítica feita ao Governo de que “existe um excessivo economicismo nas políticas sociais”.
O debate durou mais de cinco horas e só terminou quando o presidente do parlamento, Barbosa de Melo, elogiou “esta nova experiência parlamentar”.
O regimento da Assembleia da República estipula que o debate do estado da nação se faça "numa das últimas 10 reuniões da sessão legislativa", que é "iniciado com uma intervenção do primeiro-ministro sobre o estado da nação, sujeito a perguntas dos grupos parlamentares, seguindo-se o debate generalizado que é encerrado pelo Governo", transmitidos em direto pela ARTV, o canal do parlamento.
Este tipo de debate não está em questão, numa fase em que o PSD propôs e o parlamento está a discutir reformas de funcionamento que passam pela redução do número de debates com o primeiro-ministro.
Ao longo dos últimos anos, passaram pela sala das sessões de São Bento para discutir o estado da nação seis primeiros-ministros, António Guterres, José Sócrates e António Costa, do PS, e Cavaco Silva, Durão Barroso e Pedro Passos Coelho, do PSD.
Este figurino perdeu, porém, relevo após novas mudanças no regimento em 2007 e com a introdução, primeiro, dos debates mensais e depois dos debates quinzenais, em que os partidos vão confrontando, de duas em duas semanas, o primeiro-ministro com os temas políticos de atualidade, o mesmo que está agora a ser questionado pelo PSD e pelo PS.
Quatro horas para debater o ano parlamentar da pandemia
António Costa, à frente do Governo minoritário do PS desde 2015, abre na sexta-feira o debate do estado da nação, com quase quatro horas, após um ano parlamentar marcado pela crise da pandemia de covid-19.
O debate sobre o estado da nação - criado em 1992, durante a maioria absoluta do PSD e de Cavaco Silva - é, regimentalmente, sobre "política geral", sendo o chefe do executivo o primeiro a discursar, que, depois, é "sujeito a perguntas dos grupos parlamentares, seguindo-se o debate generalizado".
O início do plenário está marcado para as 15:00 e a grelha de tempos prevê 232 minutos de discussão, ou seja, quase quatro horas.
Depois da intervenção inicial de António Costa, que poderá durar até 40 minutos, os partidos terão direito a pedidos de esclarecimento e intervenções, pela seguinte ordem: PSD, PS, BE, PCP, CDS-PP, PAN, PEV, Chega e Iniciativa Liberal (IL).
De acordo com o 'site' do parlamento, o primeiro pedido de esclarecimento de cada partido poderá ter a duração de cinco minutos e os restantes de dois.
O primeiro-ministro "responderá individualmente, sem direito de réplica, a cada um dos primeiros pedidos de esclarecimento, e em conjunto, se assim o entender, aos restantes pedidos dos grupos parlamentares".
O encerramento cabe ao Governo, que, para tal, tem dez minutos. Habitualmente, é um ministro, e não António Costa, a fazer esse discurso – em 2019, foi o então ministro das Finanças, Mário Centeno.
Dos líderes partidários, apenas o presidente do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos, não é deputado e não estará no hemiciclo.
As intervenções principais serão efetuadas por Rui Rio, do PSD, Catarina Martins, coordenadora do BE, Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP. No CDS, caberá a Telmo Correia, líder parlamentar, a intervenção principal.
Este será o primeiro debate do estado da nação em que participam mais dois partidos, o Chega, de André Ventura, e a IL, de João Cotrim Figueiredo. No hemiciclo há já duas deputadas independentes – Joacine Katar Moreira (ex-Livre) e Cristina Rodrigues (ex-PAN).
Após meses, de março a junho, de clima de tréguas políticas, em que foram aprovadas na Assembleia da República leis de resposta ao surto pandémico com apoios à esquerda e à direita, o ambiente político voltou a adensar-se no Orçamento Suplementar para fazer face às despesas com a pandemia que quase paralisou e pôs o país em estado de emergência.
Pela primeira vez em cinco anos, PCP e PEV, ex-parceiros dos socialistas na chamada “geringonça”, votaram contra e o PS ficou isolado no voto favorável. Votaram também contra o CDS, Chega e IL. PSD, BE, PAN e a deputada não inscrita (ex-PAN) Cristina Rodrigues abstiveram-se.
Em 2019, o debate do estado da nação, último antes das eleições de Outubro, António Costa fez o elogio à estabilidade em tempos de entendimento à esquerda, ou da chamada “geringonça”, e ao feito de se ter conseguido “o défice mais baixo da democracia”.
“A estabilidade política, a previsibilidade das políticas, a normalidade institucional, o respeito pela Constituição são elementos fundamentais para o ganho desta legislatura: a recuperação da confiança”, disse.
"Nem o Diabo apareceu nem a austeridade se disfarçou", disse, numa frase que gerou burburinho no hemiciclo.
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