Num artigo publicado na Acta Médica Portuguesa, a revista científica da Ordem dos Médicos, um conjunto de especialistas, entre eles o ex-diretor-geral da saúde Constantino Sakellarides, criticam o Plano de Inverno apresentado pelo Governo, que dizem ser tardio pois ainda tem de ser apreciado pelo Conselho Económico e Social e pelo Conselho Nacional de Saúde.
“Além disso, é muito intencional e pouco operacional, verificando-se a ausência de um enquadramento estratégico, priorização das medidas, quantificação, um cronograma, definição de responsabilidades, financiamento associado, gestão dos recursos humanos e procedimentos em caso de sobrelotação”, sublinham.
O artigo, que conta com a colaboração de especialistas de unidades como o Hospital São Francisco Xavier (Lisboa), da NOVA Medical School/Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, do Hospital Fernando da Fonseca e da Escola Nacional de Saúde Pública, refere que o plano apresentado “não presta atenção às necessidades dos profissionais de saúde, muito acentuadas por esta crise”.
Os especialistas lembram que Portugal é o país europeu onde as pessoas recorrem mais às urgências hospitalares e alertam que, se não houver uma atuação a montante, estas podem colapsar pois “o internamento irá transbordar”.
“Entraremos numa nova fase de cancelamento da atividade programada com consequências catastróficas para a saúde das populações”, afirmam os especialistas, defendendo que a estratégia para o inverno deve ser construída “de forma participada” e exige “um acordo mínimo com as profissões e um compromisso multissetorial”.
“Estes são tempos excecionais, que requerem respostas excecionais: os modelos conhecidos de operar foram interrompidos e o novo normal ainda não emergiu”, afirmam.
Defendem que se deve apostar numa estratégia que mantenha o foco na importância dos comportamentos individuais, com medidas de prevenção e mitigação do novo coronavírus, com políticas de proteção dos grupos mais vulneráveis, uma aposta intensa na testagem e um reforço da capacidade das unidades de saúde pública.
Os autores referem também que é preciso “melhorar a eficiência dos sistemas de informação (SINAVE e Trace COVID-19), partilhar os dados e reforçar a vacinação para a gripe, com atenção especial aos profissionais de saúde e do setor social, procurando reduzir o afluxo às urgências destes doentes”.
O SNS, insistem, precisa “de um dispositivo de regulação do acesso, sendo o acesso aos serviços de urgência uma componente particularmente crítica”.
No artigo, indicam que as soluções para esta regulação do acesso às urgências deveriam ser locais e regionais e que é preciso incentivar junto da população uma utilização mais racional das urgências, promover o recurso à linha Saúde 24, aumentar a capacidade dos cuidados de saúde primários e a sua disponibilidade para atender as situações agudas não urgentes.
Alargar horários de atendimento, reservar vagas nas consultas hospitalares para atendimento não programados, promover uma melhor utilização dos hospitais de dia e lançar programas de gestão de caso para os utilizadores frequentes das urgências, são outras das sugestões apresentadas.
“De forma a descongestionar os serviços de urgência será essencial permitir o atendimento aos doentes com sintomas gripais ou infeções respiratórias em estruturas dedicadas fora do espaço das urgências”, afirmam, lembrando que estas unidades “já foram ensaiadas durante a pandemia da gripe A em 2009” e devem ser asseguradas segundo uma estratégia a adotar entre hospitais e cuidados de saúde primários.
A este nível, referem que os testes rápidos para os vários vírus respiratórios “seria importante para acelerar o fluxo dos doentes”.
Lembram que a população em geral é tendencialmente envelhecida e tem “múltiplas comorbilidades crónicas” e defendem a criação de planos de contingência elaborados com o envolvimento dos profissionais ‘no terreno’, com respostas planificadas para os vários cenários e com atribuição clara de funções e responsabilidades.
“Durante o inverno, os hospitais devem adotar uma lógica explícita sobre o que podem fazer e sobre aquilo que não farão. Não podem adiar tudo”, afirmam, sublinhando: ”É incongruente impedir os óbitos causados por epidemias em curso, quando um número elevado de outros doentes morre porque não obteve, atempadamente, cuidados médicos”.
Insistem na importância dos circuitos dentro das unidades de saúde, para “não deixar que a infeção tome conta do hospital”, de melhorar a qualidade do trabalho de equipa, através da partilha contínua da informação e decisão, e combater a fadiga e o ‘burnout’ nos profissionais de saúde, inovando procedimentos e alternando funções.
“A estrutura dos hospitais em silos estanques dedicados a órgãos ou sistemas é inadequada”, consideram ainda os especialistas, que sugerem uma organização que integre a gestão comum de camas, alegando que “ é mais flexível e adequada para responder à variabilidade da necessidade de camas de internamento”.
“É preciso colmatar os défices que persistem em alguns setores e captar para o SNS os recém-especialistas das especialidades que têm estado na linha da frente ou no seu apoio”, acrescentam, referindo-se sobretudo à Medicina Interna, Infeciologia, Pneumologia, Anestesiologia e Medicina Intensiva.
Contudo, dizem que, “em situações limite, todas as especialidades podem ser recrutadas, assim como os alunos de Medicina do sexto ano”.
O artigo lembra também que, uma vez que será imprevisível o impacto da ausência ao trabalho dos profissionais de saúde por motivo de doença, vai ser preciso reforçar os serviços de Saúde Ocupacional.
Defendem igualmente a ampliação dos programas de hospitalização domiciliária, que “evitam a admissão em enfermarias hospitalares de muitos doentes que podem ser tratados em casa por equipas hospitalares”.
Para aumentar a capacidade de internamento, os especialistas dizem ser necessário “criar alternativas para acolher os doentes com alta clínica que permanecem nas enfermarias (em fevereiro de 2020 eram 1551), seja por motivos sociais ou à espera de vaga na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI)”.
Alertam que os orçamentos-programa contratualizados com os hospitais estarem “ultrapassados pela paragem das atividades programadas” e sublinham: “O não cumprimento dos objetivos iniciais não pode comprometer o financiamento dos hospitais, que tiveram de incorrer em despesas extraordinárias”.
(Artigo atualizado às 09:49)
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