“Não me lembro de nenhum caso em que Ucrânia e Portugal, bilateralmente e multilateralmente, tiveram divergências em Nova Iorque”, afirmou Sergiy Kyslytsya em entrevista à Lusa, antecedendo a sua presença hoje nas Conferências do Estoril, organizadas pela Nova SBE.
Segundo o representante permanente nas Nações Unidas, os dois países não têm obstáculos no trabalho diário e vasto de assuntos a tratar, em concreto na Assembleia-Geral, prestes a iniciar nova sessão quando a Ucrânia ultrapassa mais de um ano e meio desde o início da invasão russa, condenada pela maioria da comunidade internacional.
“Até agora Portugal está a fazer um excelente trabalho”, avaliou o diplomata, destacando que “a capacidade da liderança portuguesa de estar do lado certo da História e não ficar sentada é admirável”.
Esta postura é medida pelas decisões estratégicas de Lisboa, que desde o primeiro momento se colocou do lado de Kiev, ao nível bilateral e no quadro da União Europeia e da NATO, mas também pelo acolhimento de mais de 50 mil refugiados, um número ‘per capita’ “muito elevado face à população”.
O representante da Ucrânia na ONU desde 2019 depois de ter sido vice-ministro dos Negócios Estrangeiros – e que aprecia fado, Mariza e Ana Moura – defende que Portugal tem “uma grande possibilidade” de ser eleito para o Conselho de Segurança em 2027, ainda que enfrente uma concorrência difícil, se mantiver a reputação de defensor firme da Carta das Nações Unidas e de luta pelo desenvolvimento e contra as alterações climáticas.
Ainda é cedo para as escolhas de Kiev, mas Kyslytsya destacou que vai ser tida em conta “a dedicação não só verbal para apoiar a Ucrânia nesta guerra, inclusive no Conselho de Segurança, mas também em termos práticos”.
Os dois países têm abordado o papel de Portugal na relação com o Brasil e o continente africano a propósito do conflito na Ucrânia, mas também em outras áreas que Kyslytsya apontou como grandes desafios no chamado Sul global, como o desenvolvimento, segurança alimentar e energética e clima, em que elogia a postura ativa de Lisboa.
“Não se deve subestimar a importância de Portugal nas Nações Unidas, porque a beleza da assembleia-geral, ao contrário do Conselho de Segurança, é que todos os países são iguais”, comentou.
O mesmo não se passa com um Conselho de Segurança, “incapaz de cumprir o seu principal mandato e evitar guerras semelhantes à que está em curso”, mas o diplomata alertou que a reforma deste órgão, por muitos exigida, colide com a existência “não negociável” dos cinco membros permanentes.
“É claro que se os membros permanentes, e permitam-me lembrar quem são – Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China – não concordarem com grandes reformas, elas nunca acontecerão”, afirmou.
O caso da Rússia é paradigmático, mantendo-se como membro permanente no Conselho de Segurança com poder de veto, apesar de responsável por uma grande guerra na Europa, “só comparável com a Segunda Guerra Mundial na sua magnitude, devastação e pelo impacto noutros países”.
Esta presença é em si questionável: “O primeiro episódio de ocupação da Rússia foi o assento da União Soviética em 1991, ignorando os requisitos e critérios da Carta das Nações Unidas e o parecer do conselho jurídico da ONU”, argumentou.
Seguiram-se, frisou, outras ocupações em partes da Moldova, da Geórgia, da Crimeia e do leste da Ucrânia.
“A Rússia acreditou que, ao sair com segurança dessas situações, a [invasão da] Ucrânia seria um detalhe e que nada aconteceria depois da inicial reação e condenação dos nossos parceiros transatlânticos”, comentou.
O próprio cargo de secretário-geral “é limitado pelo que os ‘pais fundadores’ da ONU permitiram que seja”, ao dedicar-lhe apenas cinco dos 111 artigos e menos ainda aos seus poderes, segundo Kyslytsya.
“Porém, não devemos subestimar a importância da liderança do secretário-geral”, referiu, dando como exemplo o papel de António Guterres, atualmente o cargo, e que é “um político experiente e reputado” e dotado de “padrões morais muito elevados”, o que lhe permite conseguir muitas coisas.
Em 24 de fevereiro de 2022 (ainda era noite de 23 em Nova Iorque), a Rússia invadiu a Ucrânia e o ex-primeiro-ministro português “mudou a sua posição de forma dramática e resoluta”, de acordo com o diplomata, e apesar de não lhe ter sido pedida intervenção pelo Conselho de Segurança ou algum ator importante, acabar por dirigir “aquele apelo enfático ao Presidente [russo, Vladimir] Putin para parar a guerra”.
A Iniciativa de Cereais do Mar Negro, permitindo a exportação de bens ucranianos até então bloqueada pela frota da Rússia, que entretanto suspendeu o acordo e relançou o mundo na incerteza alimentar e risco de escalada de preços, foi “significativamente a realização pessoal” de Guterres.
“Foi literalmente ele próprio quem passou semanas, senão meses a negociar esse acordo com a Ucrânia, Rússia, Turquia e outros parceiros e, pelo que sei, ele não delegou em ninguém”, recordou Kyslytsya, quando Guterres se encontra de novo muito ativo para trazer Moscovo de volta ao entendimento.
Ressalvando que não é seu papel defender o secretário-geral, o embaixador na ONU convida a que as pessoas se coloquem no lugar dele quando “todos os dias algo está a acontecer neste planeta que se está a matar”, dando o exemplo esta semana do golpe de estado no Gabão, membro eleito do Conselho de Segurança “para ser o guardião da paz”.
O diplomata ucraniano elencou ainda os conflitos na Síria, no Iémen e noutras partes do globo, a fome e estados em bancarrota, em que o secretário-geral se torna “infelizmente, muitas vezes, num bode expiatório, porque muita gente acredita que ele é primeiro-ministro das Nações Unidas, mas não é”.
A ONU, frisou, é a assembleia dos países e o secretário-geral o principal funcionário: “Se são tomadas más decisões, são tomadas pelos governos em primeiro lugar”.
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