O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, intensificou nos últimos dias os seus apelos aos governos de todos os países para que colaborem numa estratégia global comum de combate à pandemia de covid-19. Através de mensagens de vídeo divulgadas pela agência de notícias ONU News, pediu “um cessar-fogo imediato, em todas as regiões do mundo”, e disse ser urgente substituir as estratégias adotadas em cada país por “uma resposta global coordenada”. Esta quinta-feira, 26, irá participar na cimeira de emergência do G-20, onde serão debatidas medidas concretas.
O líder das Nações Unidas tem vindo a apelar à união e solidariedade na luta contra o novo coronavírus já desde o início de fevereiro, alertando em particular para a necessidade de proteção dos mais fragilizados, como as populações dos países em guerra. Nos últimos dias, os apelos intensificaram-se e culminaram com um apelo a um cessar-fogo imediato e global: “Tenhamos presente que, nos países assolados pela guerra, os sistemas de saúde colapsaram e os já escassos profissionais de saúde são frequentemente atacados. Por sua vez, os refugiados e as pessoas deslocadas por conflitos violentos encontram-se numa situação de dupla vulnerabilidade”, salientou António Guterres no vídeo divulgado dia 23.
Lembrando também “as mulheres e as crianças, as pessoas com deficiência, os marginalizados e os deslocados”, os pedidos de António Guterres foram claros: “Silenciem as armas, parem a artilharia, acabem com os ataques aéreos. Isto é crucial para ajudar a criar corredores humanitários que salvam vidas”, sublinhou, justificando assim o seu pedido de cessar-fogo: “É tempo de acabar com os conflitos armados e de, em conjunto, nos focarmos na verdadeira batalha das nossas vidas.”
O pedido de cessar-fogo será certamente um dos temas que Guterres levará a debate na cimeira de emergência do G-20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), que terá como objetivo encontrar soluções para a crise mundial provocada pelo novo coronavírus, e na qual António Guterres afirmou estar “ansioso” por participar. O encontro está marcado para quinta-feira, 26, através de videoconferência, e nele deverão participar os líderes dos 20 países que integram estes grupo.
Apelos “como sementes prontas a germinar”
Na mensagem partilhada no passado dia 19, António Guterres tinha já considerado que “este é um momento que exige políticas de ação coordenadas, decisivas e inovadoras por parte das economias mais desenvolvidas”, salientando que “os países mais pobres e as pessoas mais vulneráveis, especialmente as mulheres, serão os mais afetados”.
Para o responsável da ONU, “é necessário alterar esta situação, em que que cada país tem a sua própria estratégia de saúde, para que, com total transparência, se adote uma resposta global coordenada, que ajude os países menos preparados a lidar com esta crise”.
Guterres considera que “ao contrário do que aconteceu na crise financeira de 2008, injetar capital no setor financeiro, por si só, não resolverá esta crise”. E acrescentou: “Não estamos perante uma crise da banca. Na verdade, os bancos devem fazer parte da solução.”
Questionado sobre a possível eficácia destes apelos, Luís Moita, professor catedrático de Relações Internacionais e membro do Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, afirma que a mesma fica “diminuída”: “O mandato de António Guterres coincide com a pior conjuntura possível, num momento em que há uma ofensiva sistemática contra o multilateralismo por parte de grandes poderes mundiais”, justifica. “Os nacionalismos de várias cores e as decisões unilaterais fragilizam as Nações Unidas e a «arquitetura» da comunidade internacional no seu conjunto”, lamenta o especialista em relações internacionais.
Isso não significa, no entanto, que considere “inúteis ou dispensáveis” os apelos do secretário-geral da ONU. “Pelo contrário, é preciso que haja vozes que não se calam, é imperioso que certos valores sejam incessantemente proclamados, para que não fiquem esquecidos e que sejam como sementes prontas a germinar. No caso concreto, o apelo a um cessar-fogo global, generalizado, parece impor-se com tanta veemência que algum eco ele terá certamente, para que não se sobreponham catástrofes às catástrofes e o sofrimento de multidões seja aliviado”, afirma o professor universitário, que proferiu na UAL, em Julho passado, a sua “última lição” pública.
Ampliar gastos com saúde, apoiar salários, desmantelar barreiras comerciais
Encarando a pandemia de covid-19 como “uma situação sem precedentes”, António Guterres diz que “as regras normais” deixaram de ser suficientes. “Não podemos recorrer às ferramentas usuais em tempos tão incomuns. A criatividade da resposta deve corresponder à natureza única da crise, e a magnitude da resposta deve corresponder à sua escala”, defendeu.
Na opinião do líder das Nações Unidas, este é o momento de os países reforçarem os seus sistemas de saúde e fazerem “investimentos cruciais em serviços públicos do século XXI”. O secretário-geral da ONU considera uma prioridade, neste momento, “a ampliação dos gastos com saúde para cobrir, entre outras coisas e sem estigma, testes, apoio aos profissionais de saúde e garantia de fornecimentos adequados”.
Guterres referiu também a necessidade de medidas como o “apoio a salários, garantias bancárias, proteção social, prevenindo falências e a perda de postos de trabalho” e ainda o “desmantelamento das barreiras comerciais”. Sublinhou igualmente a importância de “garantir que todas as crianças tenham acesso à comida e igual acesso à aprendizagem, fechando o abismo digital e reduzindo os custos de conectividade”, lembrando que “mais de 800 milhões de crianças estão fora da escola agora, muitas das quais dependem da escola para fornecer sua única refeição”.
Luís Moita subscreve as medidas propostas pelo secretário-geral da ONU e tem a esperança de que “a percepção de risco global que esta pandemia trouxe consigo possa, no mínimo, obrigar à revisão de prioridades na gestão das nossas sociedades”. Na sua opinião, “pode esperar-se que haja menos gastos militares e mais investimento em investigação científica e em aplicações concretas no domínio sanitário. Pode ser que a saúde publica universal seja uma próxima frente de luta para todos os países e para os organismos internacionais”. Mas é importante, defende, que “saibamos aprender as duras lições do presente”.
António Guterres recordou aliás, nas suas declarações, que já existem orientações para ser seguidas, como as que foram definidas no passado pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e pelo Acordo de Paris, para as Alterações Climáticas: “Temos de cumprir as promessas feitas às pessoas e ao planeta”. E deixou o compromisso: “As Nações Unidas, e a nossa rede global de escritórios nos países, apoiarão todos os governos para garantir que a economia global e as pessoas a quem servimos saiam mais fortes desta crise”.
Luís Moita, por seu lado, está otimista: “O papel inestimável desempenhado até agora por uma instituição do sistema das Nações Unidas como é a Organização Mundial de Saúde levará certamente a revalorizar o multilateralismo. A necessidade de estratégias coordenadas que a presente situação tornou manifesta, talvez se venha a repercutir em mais intensas práticas de cooperação entre as nações.”
*Por Clara Raimundo/7Margens
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