Diogo Rocha é cônsul honorário da Turquia no Porto, onde há quase dez anos fundou com dois amigos um gabinete de arquitetura e urbanismo, a Mass Lab. Regressou de Ancara na véspera do grande sismo, de 6 de fevereiro, e nos dias seguintes recebeu mais de 100 chamadas por dia a oferecer ajuda. Agora, os telefonemas prendem-se mais com o abalo provocado pelas medidas propostas pelo governo para o setor da habitação.
"Temos uma instituição, que se chama SEF, que torna qualquer processo diabólico"
A questão tem várias dimensões, mas o problema começa aqui: "Qualquer cidadão ou empresa que não seja da União Europeia e queira vir para Portugal passa por um processo muito complicado", diz o cônsul honorário da Turquia no Porto. "Porque temos uma instituição, que se chama SEF, que torna qualquer processo diabólico".
Diogo Rocha sabe do que fala, não só porque uma das suas principais funções é dar apoio aos cidadãos turcos no país e às empresas turcas que querem exportar ou instalar-se em Portugal, mas também pela experiência do seu gabinete. Estava em Ancara, em representação da Mass Lab, com uma missão de empresários, o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, e o seu homólogo turco, Mevlüt Çavusoglu, na véspera do terramoto que assolou parte da Turquia.
"A maior parte das empresas turcas queixava-se da dificuldade em ter as pessoas cá. Quer dizer, não faz sentido terem cá quadros superiores que não conseguem os seus vistos. Chega uma determinada altura e essas pessoas recusam-se a estar nesta circunstância", explica. "O CEO da empresa mãe da Cimpor [o fundo turco OYAK] queixou-se disso".
O ministro, João Gomes Cravinho, reconheceu o problema e avançou que o processo de reestruturação do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras está quase terminado, garantindo que em abril já estaria em funcionamento uma nova instituição e que estes processos seriam agilizados. "Parece-me um bocadinho de mais acreditar que o problema seja resolvido da noite para o dia", confessa Diogo Rocha.
A Mass Lab também sente estas dificuldades. No escritório, existem trabalhadores de países terceiros, "que estão cá há dois anos e ainda não têm visto de trabalho e de residência". Um desses casos é de uma cidadã turca. "Na verdade, já perdemos pessoas por causa disso", conta. "Perdemos uma pessoa que veio da Índia, mas que não aceitou ficar nesta situação; cada vez que viajava tinha apenas um papel a dizer que tinha um contrato de trabalho e que estava inscrito na Segurança Social, mas não tinha um visto efetivo. Foi daqui para o Canadá e obteve um visto em dois meses".
"As pessoas não gostam de estar neste limbo. Por exemplo, temos uma pessoa que é do Egito. Como não existem voos diretos, tem de fazer escala. O medo é ser barrado à passagem e ficar pelo caminho quando vai, por exemplo, visitar a família", detalha.
E, a este propósito, relata que o primeiro contacto que teve com a ACT - Autoridade para as Condições do Trabalho e o IEFP - Instituto de Emprego e Formação Profissional foi por causa da contratação de pessoas de países terceiros. "Há uma norma que diz que tem de ser dada preferência a cidadãos da União Europeia. Nem sei como isso se controla, mas, na minha opinião, é um princípio de discriminação que até viola os valores da UE".
A comunidade turca em Portugal é pequena, mas tem vindo a aumentar na última década. Em 2018, deu um salto de 743 para 1090 pessoas e só nesse ano foram emitidas 264 autorizações de residência para investimento (vistos gold). Hoje, já são mais de duas mil pessoas. A maior fatia concentra-se em Lisboa e no Porto, aparece em segundo lugar. O negócio, claro, vem atrás.
Da exploração de portos ao imobiliário
O investimento turco em Portugal tem vindo a crescer na última década. Além da compra da Cimpor, pela OYAK Cement, detida pelo fundo de pensões das Forças Armadas turcas, OYAK, o setor portuário nacional já tinha atraído a atenção de diversas empresas. Só a Yilport comprou sete terminais, e no final do ano passado, anunciou um investimentos de cerca de 200 milhões de euros na modernização dos portos de Lisboa e Leixões.
Mas há outras companhias turcas a apostar em Portugal, como a Arkas, especialista em transporte naval, a farmacêutica Abdi Farma, a Ayse Kececi, com atividade na transformação de frutos secos, ou a Antik Dantel, no têxtil. O imobiliário também é negócio - o grupo KREA recuperou diversos prédios na Baixa Pombalina e o METEM Group comprou, para recuperar e vender, o prédio onde nasceu Raphael Bordallo Pinheiro.
De acordo com o INE - Instituto Nacional de Estatística, em 2020 (últimos dados disponíveis) tínhamos 19 filiais de empresas turcas em Portugal.
O imobiliário, por motivos óbvios, é um setor que Diogo Rocha conhece bem. "São um povo de comerciantes e isso reflete-se", diz o arquiteto. "Não vêm para Portugal, sobretudo para o norte, com uma lógica abutre. Vêm para se estabelecer, alguns até com empresas de construção, para garantir a qualidade do que constroem e que vão continuar a vender".
O setor imobiliário em Portugal tornou-se um mercado apetecível para os turcos: "Compram, arrendam e têm ali um rendimento constante que lhes garante alguma estabilidade". Na Turquia, podem ganhar mais, mas o risco é também muitíssimo mais elevado.
Para Diogo Rocha, enquanto empresário, o principal problema de Portugal "é a coisa pública, que é um pouco estranha, uma relação muito difícil. A nossa relação com o Estado é toda ela muito, muito difícil - e nós, arquitetos, trabalhamos constantemente com municípios, com a Agência do Ambiente, com vários organismos públicos.
"É muito difícil explicar que as coisas aqui não são preto no branco, que a lei tem uma quantidade de entrelinhas, que há negociações e tempos de espera"
Para o cônsul honorário da Turquia "é muito difícil explicar a alguém que as coisas aqui não são preto no branco, que a lei tem uma quantidade de entrelinhas, que há negociações e tempos de espera. Uma resposta pode demorar dois ou três meses, para imediatamente ser pedido mais um documento e ficar outros dois ou três meses à espera. A burocracia é tremenda. Penso que este é o principal entrave ao investimento. Aliás", sublinha, "já ouvi vários estrangeiros dizer que estão arrependidos de terem vindo para Portugal porque isto é tão difícil". E acrescenta: "Já li e ouvi que temos um problema de corrupção sério, mas sinto muitas vezes que é sobretudo um problema de incompetência. A burocracia também existe noutros países, mas cá é realmente asfixiante".
O que se passa com os estrangeiros, passa-se com os nacionais. Por exemplo, a Mass Lab tem um projeto inovador preso nos licenciamentos camarários há mais de um ano. "No caso, quem demorou a responder foi a Infraestruturas de Portugal", explica Diogo Rocha. Trata-se de "uma ecovillage em Ponte de Lousa, em Loures, que reúne o melhor de dois mundos: estar próximo de Lisboa, mas inserida numa paisagem privilegiada, dentro do conceito dos 15 minutos [tudo se consegue fazer a pé]".
O projeto prevê 55 casas, zonas de comércio, coworking, centro de bem-estar e centro de cuidados continuados. "Vai proporcionar uma nova forma de estar e tem um modelo de casa por subscrição que, no fundo, agrega um conjunto de serviços e permite ampliar ou diminuir as casas, que são modelares, consoante as necessidades de cada um". O investimento é totalmente privado e a fé aponta para que as obras de urbanização comecem ainda este ano.
O que nos leva às propostas do governo para a habitação. Com este programa para a habitação, "o que parece é que o governo tenta ir a todas. Independentemente do resultado final, cria instabilidade no mercado e os investidores ficam mais cautelosos".
De resto, o Porto não é muito diferente de Lisboa. "Temos a ideia de que se constrói muito, mas, na verdade, está-se a construir muito pouco", afirma o arquiteto. "Correndo o risco de bater na mesma tecla, os nossos municípios demoram imenso tempo a licenciar os projetos. O pipeline é grande, mas para chegar ao mercado com um imóvel o promotor está três anos à espera. E é por chegar muito pouco produto novo ao mercado final que os preços estão tão altos".
"Temos de fazer casas mais pequenas e com serviços partilhados"
"Não existe uma solução que resolva tudo, mas a mentalidade tem de mudar e temos de caminhar no sentido da sustentabilidade. O que significa fazer casas mais pequenas - porque a primeira regra da sustentabilidade é construir menos -, e com serviços partilhados; não precisamos todos de ter uma lavandaria em casa".
Por outro lado, "a nossa construção ainda é muito rudimentar, pouco assente em tecnologia e muito assente em mão-de-obra. Estamos num ponto de viragem, porque como temos pouca mão-de-obra, necessariamente as empresas têm de reforçar a tecnologia para continuarem a construir. A pré-fabricação começa agora a aparecer como solução".
Diogo Rocha também discorda do modelo de habitação social seguido até aqui. "Não me parece o ideal. Nos anos 1960 e 1970 construíram-se bairros sociais e, no fundo, segregámos as pessoas em vez de as integrar. Pessoalmente, acredito na habitação como forma de ascensão social, defendo o modelo de aquisição progressiva como uma das formas de enriquecimento das famílias".
Muito mais que Jorge Jesus
A Turquia olha para Portugal como um mercado onde pode fazer negócio, mas também como porta de entrada para a União Europeia. E as empresas portuguesas, como olham para a Turquia? Afinal não exportámos apenas Jorge Jesus para o Fenerbahçe, Sérgio Oliveira para o Galatasaray ou Gedson Fernandes para o Besiktas.
Diogo Rocha responde: "A sensação que tenho é que não temos muitas empresas na Turquia. Mas há bastantes empresas portuguesas que compram e fabricam lá produtos, de material circulante a têxtil automóvel, passando por materiais de construção".
Claro que "enquanto mercado é difícil", são 85 milhões, e "a inflação é brutal" - em janeiro foi de 57,7%, de acordo com a TurkStat, o organismo de estatística turco. O arquiteto lembra que em 2019 "um euro valia cerca de sete liras turcas, agora vale 20". Além disso, "Portugal é um país periférico e ainda não é olhado com credibilidade, é um país do sul".
Mas, "como ponto estratégico de produção, é interessante. Acho que a Turquia é, e pode ser, a nova fábrica da Europa, e até se justifica o investimento". E dá o exemplo da Livraria Lello, que produz alguns dos seus livros no país, ou da Parfois. Mas muitos mais casos existem.
Além disso, Diogo Rocha acredita que nos falta ambição. "Muitas vezes achamos que não somos capazes, mas somos, temos tudo o que é preciso".
A prova que quando é necessário os portugueses se mobilizam e avançam foi dada muito recentemente. "Nunca antes tinha estado nesta posição, mas a vontade das pessoas ajudarem é realmente impressionante, o sentimento de empatia é muito grande". Nos dias seguintes ao sismo, que matou mais de 44 mil pessoas na Turquia e na Síria, o cônsul honorário recebeu "mais de 100 chamadas por dia a oferecer todo o tipo de ajuda".
Admite que a campanha de recolha de bens tenha sido mal planeada, o que acabou por deixar muita roupa para trás - só se aceitava peças de vestuário novas, com etiqueta, por não haver como fazer uma triagem em tempo útil -, o que acabou por ser entendido por muitos como ingratidão da Embaixada da Turquia em Portugal. O que "está longe de ser verdade. Foi uma situação de emergência, não havia uma operação de logística montada. Talvez tivesse havido alguma falta de conhecimento de quem estava a coordenar, mas a intenção foi boa".
O resultado também: foram enviadas para a Turquia 15 toneladas de bens recolhidos no Porto e 30 toneladas de bens recolhidos em Lisboa. E não foi negócio, foi solidariedade.
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