Sentados à mesa estão os Criatura, um projeto artístico alternativo que levanta a voz por temas que revoltam quem “sente”, como cantam no single do último álbum: “eu sou uma Criatura que sente e nós chegamos à frente”. Nascidos em 2014, em Serpa, 11 anos depois a sua premissa mantém-se a mesma: “imaginar novos caminhos, sem nunca deixar cair a memória, a raiz a que tudo remonta”. 

A passagem por Coimbra deve-se a uma proposta de residência artística no Salão Brasil, para composição de novos temas. Segundo Bernardo Rocha, representante desta associação, a iniciativa surgiu “de forma muito orgânica”, e a vontade de sair do espaço de residência e conhecer outros grupos da cidade foi transversal a todos os músicos. 

“Unimos todos os esforços para fazer um encontro de música entre o Grupo Etnográfico de Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC) e os Criatura, e a Bota-a-Baixo recebeu-nos aqui de forma maravilhosa”, conta. Nesta quarta-feira, a casa dos estudantes abriu a porta a mais de 50 criaturas e encheu-se, assim, de músicos e instrumentos. 

Adufes, guitarras, violões, gaitas-de-foles, pandeiretas e acordeões acompanhavam a cantoria. “Toda a gente é muito bem-vinda, porque, na verdade, este evento tornou-se mais do que uma proposta de programação, é um encontro de música, partilha e experiências”, sublinha Bernardo Rocha.

“Um dos princípios da casa é ter as portas abertas a toda a comunidade, sem qualquer preconceito, e podermos assistir a uma noite como a de ontem, com a casa cheia e com tanta vida, dá-nos um sentimento bastante gratificante. Mais que uma casa, é uma comunidade que é nossa, mas também de todas as pessoas que passam por aqui e que, desta forma, podem viver a casa mesmo não vivendo nela”, declara Duarte Costa, estudante residente na Bota-a-Baixo. 

O GEFAC juntou-se à folia com dança e mais música, um grupo que trabalha a herança cultural e o património popular sob três vertentes: o teatro, a música e a dança. Nesta noite, o destaque foi para a reprodução de temas tradicionais da cultura popular portuguesa, num ensaio aberto desconstruído, sem cancioneiro, nem pauta. O repertório trabalhado por ambos os grupos é semelhante: reconhecem-se os braços levantados do vira do Minho, a cadência acelerada do corridinho do Algarve e a voz arrastada, sofrida, mas furiosa, do cante Alentejano. 

Impedir a cristalização da cultura popular é a maior luta do organismo. Para Beatriz Marques, presidente do GEFAC, estes eventos não só “incentivam o grupo a sair das salas de ensaio e a dar a conhecer o seu trabalho à cidade, nomeadamente à comunidade estudantil, como permitem que o GEFAC tenha contacto com outros grupos com objetivos semelhantes no trabalho do tradicional, que é o caso dos Criatura”. 

Os sons tribais e os ritmos marcados pelo pé a bater no chão ressoam na estrutura de madeira dos bancos da sala, para onde os músicos sobem, como criaturas em movimento. O público não se distingue dos artistas. Todos, neste momento, são criaturas. “É muito bonito ver a malta dos Criatura com o GEFAC a trocarem conhecimentos musicais, de pequenas técnicas, e só isso, só essa troca, vale tudo”, comenta o promotor. 

Tanto nas letras, como na sonoridade, a inspiração da música popular é evidente na criação do último álbum do bando, “Bem Bonda”. Bernardo Rocha acredita que a junção de músicos de várias regiões, “sem ser só de Lisboa, mas que se encontraram e trabalharam lá, e agora vêm conhecer Coimbra”, manifesta a vontade de “criar laços muito valiosos, inclusive com a cultura imaterial, que muitas vezes não chega a lado nenhum, mas que aqui é partilhada e celebrada”.

Pastor sem Cajado é um dos temas que mais bebe da cultura popular portuguesa, sem por isso perder a identidade do grupo. A marca dos Criatura está vincada na contribuição da trompete, da melodia oriental no início da música, mas, principalmente, na denúncia de uma questão social mais atual que nunca: “tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. (...) O Pastor guarda o gado e o gado nada muda. (...) O gado tem cajado e tu estás acabado e que ninguém que te acuda”.

A contribuição destes grupos na vida cultural da cidade

A “noite de folia” é mais uma organização do Salão Brasil e do JACC - Jazz ao Centro, instituições culturais de referência na cidade pela forma como contribuem e estimulam o cenário artístico local. Na organização desta atividade em particular, para Bernardo Rocha, importa lembrar que “este tipo de eventos acontecem apenas pela própria presença destes atores na cidade, que fazem com que as coisas surjam de forma natural”. 

Por entre as palmas e os risos, as paredes da Bota-a-Baixo, cheias de frases e desenhos, também cantavam. Em cada divisão juntava-se um grupo diferente, e à vida centenária daquela morada somavam-se anos de histórias contadas pelos que estavam presentes. Na opinião do organizador, “as repúblicas são e serão sempre uma grande bandeira cultural da cidade de Coimbra”.

“Esta é a casa onde vivemos, mas é também uma casa que, no nosso dia a dia, nos esforçamos sempre por construir”, declara o estudante. “Coimbra é uma cidade que peca por cultura acessível, diversificada, alternativa, inclusiva, e as repúblicas entram aqui como uma alternativa a acolher eventos culturais diferenciadores, provocatórios e como pudemos ver esta noite, gratuitos, fatores que mais determinam se as pessoas têm acesso de facto a cultura e a eventos culturais”.

A República Bota-a-Baixo é uma casa que, em tempos, acolheu vários antifascistas sem rosto, em fuga, perseguidos pelo próprio medo. Naquela noite não se sentia medo, mas a revolta era a mesma: “bate o pé, que bato contigo”. Bernardo Rocha lembra que o objetivo é “dar a conhecer o universo [das repúblicas] a quem vem de fora, para que se possam sentir inspirados mas também inspirem”. 

Para os membros da república Bota-a-Baixo, “ver tanta gente a encher a casa, a dar-lhe vida e a criar tantos momentos de partilha é um sentimento muito bonito”. Duarte Costa acredita que a parte mais gratificante é poder ver que “a comunidade que ajudamos a construir realmente floresce e cria frutos e, quem sabe, até mesmo sementes que as pessoas levam consigo”. 

De acordo com Duarte Costa, a contribuição destas casas é “fundamental na promoção e na criação de cultura, especialmente no panorama da cidade de Coimbra”. Em particular, pela “ligação bastante íntima que, tanto no passado, como no presente, estabelecem com os artistas e com os promotores de eventos culturais”, permitindo que, “direta ou indiretamente", as repúblicas tenham uma função preponderante no cenário artístico da cidade.  

“Um dos aspetos mais bonitos disto tudo é que o fazem de uma forma bastante independente e sem grande apoio financeiro, o que é pena, principalmente porque é o que alimenta a cidade e a sua vida cultural e, mesmo assim, cada vez mais o apoio tem sido menor”. Para estes grupos e entidades,  “tem sido difícil promover o que de mais rico uma cidade pode ter para dar que é a sua cultura”, e, por isso, o trabalho fica sujeito à resiliência e à vontade de todos os que deles fazem parte. 

O representante do Salão Brasil destaca “o papel que estes espaços e grupos como o GEFAC podem ter na união de artistas" de várias zonas do país, "que não conhecem Coimbra”, como uma das melhores lições que “podemos retirar deste tipo de atividades”. Beatriz Marques partilha da mesma ideia: “é importante que outras entidades culturais reconheçam o trabalho do GEFAC e nos chamem para colaborações. Acaba por ser vantajoso sobretudo para dar a conhecer o grupo e descentralizar a atividade do espaço a que estamos habituados”. 

Assim caiu a noite, numa energia de euforia que descia até à baixa da cidade e encontrava conforto no silêncio do rio Mondego. Nos dias que se seguiram, os Criatura passaram pela Real República Baco e na Real República Rápo-Táxo, com o projeto Contos e Lenga Lendas, e o GEFAC seguiu a sua jornada de trabalho. “Se é isso que a cidade precisa, não sei, mas ainda bem que está a acontecer”, termina Bernardo Rocha, sensibilizado com o momento de partilha.

*Reportagem multimédia da jornalista estagiária Ana Filipa Paz edita pela jornalista Ana Maria Pimentel