
Percorrer 278 municípios de Portugal Continental, mais de 6 mil quilómetros ao longo do mês de junho, com o propósito de entregar uma carta a cada um dos respetivos presidentes de câmara.
Esta é a viagem iniciada por Tiago Cação. A pedalar, a partir desta segunda-feira, 2 de junho, deixará em cada cidade uma mensagem escrita aos responsáveis do poder local para sensibilização do uso da bicicleta e a sua inclusão na execução das políticas de mobilidade urbana.
“Todos os anos tento fazer uma prova, um desafio pessoal, no qual alio um pouco de atividade física e cidadania”, começa por explicar ao SAPO24 Tiago Cação, profissional da área da cultura (booking agent na Universal Music) e atleta de alta competição de ultradistâncias (ciclismo).
“Este ano, até porque vamos ter eleições autárquicas, decidi fazer uma aventura um bocadinho mais extrema, mas com um propósito. Chama-se Projecto 278, que equivale ao número de municípios de Portugal Continental”, revela.
“Pretendo entregar uma carta a cada um dos presidentes de câmara sobre políticas de mobilidade urbana e de que forma se deve priorizar a utilização da bicicleta nas cidades”, decifra.
O ciclista, que veste a camisola amarela da cidadania, reconhece a dificuldade logística e de agenda na entrega em mão desta Carta a Garcia.
“Encontros com cada um dos presidentes, tecnicamente, vai ser impossível”, admite. “Alguns talvez consigam receber-me, mas também não posso perder muito tempo, em algumas câmaras vou chegar à noite, estão fechadas, sei disso, deixo a carta no correio, na receção, debaixo da porta, onde conseguir”, anuncia.
“Espero que alguns presidentes me recebam, mas não é a condição”, assegura. “A condição é que leiam as 278 cartas”, avisa Tiago Cação.
10 mandamentos conhecidos a conta-quilómetros
Qual o conteúdo escondido na tinta que deixará a escorrer em cada urbe?
“Só vou divulgar a carta no final da iniciativa, depois da última ser entregue, para não estar a violar a correspondência, digamos assim”, graceja, sem se preocupar com eventuais fugas de informação à medida que a missiva vai sendo entregue.
Resiste à divulgação, mas abre um pouco o teor das palavras escritas.
“É um alerta, um simples conjunto de 10 medidas que são perfeitamente possíveis de implementar, porque na verdade, nas cidades, o espaço público está ocupado maioritariamente por infraestruturas dedicadas ao carro. Saímos de casa e é passeio, estrada, estrada, passeio”, assinala.
“Quantas ruas pedonais há em Lisboa?”, questiona. “A Rua Cor de Rosa, Rossio ... é incompreensível, numa cidade do século XXI... não é possível. Não conheço uma outra cidade que tenha oito faixas rodoviárias no centro, isto é só um exemplo de Lisboa, há outros”, alerta.
Aproveita a engrenagem e deixa um lamento em relação à capital portuguesa. “Lisboa não tem garage box para bicicletas. As ruas deveriam ter uma pequena box para que as pessoas possam guardar as bicicletas”, deixa no ar.
250 quilómetros por dia guiados pela N2
A vontade de mudança de comportamentos segue como farol desta iniciativa em duas rodas.
“A partida está marcada para 2 de junho, no Porto. A chegada está “prevista entre 24 e 28, a ideia é terminar um bocadinho antes de 28”, indica.
A dois meses das eleições autárquicas, não foi inocente a escolha do local da saída, nem do recetor da mensagem. O facto de Rui Moreira “não ser candidato” foi um dos “motivos”, pelo qual Tiago Cação, o mensageiro, endereçou, com naturalidade, o convite ao atual edil “para ser embaixador do projeto”, comunica.
Esse “cuidado” foi extensível à escolha de outros embaixadores. “Tentei escolher alguém dentro da sociedade civil, digamos assim, de diferentes áreas”. Por outro lado, “não queria que ninguém se associasse ao projeto politicamente”, frisa.
Regressa à viagem missionária que se propõe fazer. “Um percurso de 6,250 km!”, especifica, um número gordo que perfaz “240 a 250 km por dia por dia”, prevê.
O trajeto da Volta a Portugal divide o mapa lusitano em dois. “Divido pela Nacional 2. Este país é esquizofrénico, não é?”, questiona, a sorrir.
E explica. “Porque a N2 atravessa uma série de montanhas, conheço bem o território, já a fiz várias vezes e para não levar uma “porrada” no Norte, tive de dividir assim. Porque se estivesse a fazer na horizontal, estava tramado”, assume.
Arranca do Porto e a última câmara do percurso “é São João da Pesqueira”, meta final oficial. “Depois terei um transfer e farei Cascais, Oeiras e Lisboa, onde termino. É uma chegada simbólica”, afirma.
A entrega das 278 cartas a 278 presidentes de câmara e o percurso é um desafio aparentemente gigantesco e duro. Tiago Cação explica a dinâmica envolvente.
“Para dormir, tenho uma caravana de apoio, uma equipa que me acompanha durante a semana”, refere. “Vamos tentar ir dormir a um hotel uma vez por semana, para lavar a roupa e ter um banho de água quente”, garante.
“Vai ser um desafio físico muito grande, mas é também uma motivação que tenho para treinar durante o ano inteiro”, diz.
Uso de bicicleta na agenda política
Tiago Cação coloca a componente física na gaveta e retoma à agenda política.
O uso da bicicleta “é um tema que não pode ficar fora do debate da campanha autárquica”, adverte. “Estamos muito atrasados em relação à mobilidade urbana”, alerta.
Uma viagem serviu de inspiração para Tiago Cação colocar em marcha o Projecto 278. “O gatilho foi em outubro ou novembro, já não me recordo, quando fui a Manchester. Está uma cidade completamente transformada, não há trânsito praticamente, há autocarros, bicicletas, ubers, táxis e o trânsito deixou de existir. À noite, o trânsito automóvel é ubers e táxis a buscar as pessoas aos pubs. Mas, durante o dia, foi uma transformação muito grande”, descreve.
“É uma cidade que foi, muitas vezes, exemplo da revolução industrial. Aquilo para mim fez-me um clique na cabeça: é possível, pensei”, recorda.
“Como curiosidade, três dias depois de chegar, ouvi o Luís Montenegro (primeiro-ministro) dizer que tinha visitado os 278 municípios, mas confesso que não liguei nada a isso. Mas, durante a noite, devo ter sonhado, porque no dia a seguir acordei com o projeto na cabeça e parti para desenvolvê-lo”, recua.
“Convidei a MUBi para redigir o documento, fui atrás dos apoios. A Associação Nacional de Municípios Portugueses apoiou o projeto, o IMT, o ICNF, temos o alto patrocínio do Presidente da República, vai dar valor à iniciativa”, relembra.
“Um ou outro pode não concordar a 100% com as medidas apresentadas [na carta], mas todos eles reconheceram o mérito da iniciativa”, avança. “Com esta iniciativa, podemos dizer que já avisámos, já falámos, já é um ponto de partida”.
"Não sou daqueles radicais... adoro conduzir"
Aos 41 anos, Tiago Cação, mora no Jardim do Torel, em Lisboa. “Não é fácil andar de bicicleta, mas há soluções, há bicicletas elétricas, há ferramentas para isso. Não há desculpas”, frisa.
Reconhece que, infelizmente, nem sempre consegue deslocar-se de bicicleta. Usa também o carro. “Não sou daqueles radicais... Não há fundamentalismo e, ainda por cima, adoro conduzir [carro]. Conduzir à noite é um dos melhores prazeres que tenho”, revela.
“Temos o exemplo de Paris, que está a transformar a cidade. Em Londres já começou essa transformação”, exemplifica.
Admite que os avanços podem dar lugar a recuos. “Há sempre pequenos ajustes. Paris anunciou uma mudança radical. Vamos ver como é que ela vai ser executada. É provável que também haja alguns recuos”, aceita.
“Mas é preciso ter vontade. E as coisas têm de ser feitas. Porque os benefícios são grandes e são reconhecidos por toda a gente. Havendo mudanças, as pessoas vão perceber que a vida é um bocadinho melhor. Fica mais barata, é mais saudável”, antecipa Tiago Cação.
“É preciso criar infraestrutura para que as pessoas se desloquem. E que tentem. Quando perceberem que é mais fácil e a vida é bem melhor, mudam”, finaliza.
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