A pandemia veio trazer os psicólogos para a ribalta e mostrar que a saúde mental é tão importante para o bem-estar como a saúde física, se é que esta separação pode ser feita assim.

Apesar da necessidade evidente de apoio nesta área - as seguradoras foram as primeiras a perceber, quando passaram a incluir as consultas de psicologia nas suas apólices -, o Serviço Nacional de Saúde continua parado no tempo nesta matéria e faltam psicólogos no SNS, com consequências desastrosas a vários níveis.

A começar pela escola, onde o problema é muitas vezes identificado, mas dificilmente um caso pode ser referenciado, porque só há 300 psicólogos nas Unidades de Saúde Familiar e "os psicólogos não podem fazer nas escolas o que tem de ser feito nos centros de saúde", diz Francisco Miranda Rodrigues.

Nem de propósito, o bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses e a bastonária da Ordem dos Nutricionistas apresentam hoje à direcção executiva do SNS documentos orientadores para a construção de serviços psicologia e de nutrição no âmbito das Unidades Locais de Saúde.

Mas a psicologia não se limita à área clínica. Cada vez mais as corporações têm consciência dos impactos do stresse e dos problemas de saúde mental na sua actividade: um estudo recente estima que o custo da perda de produtividade das empresas portuguesas não financeiras devido a estes factores foi de 5,3 mil milhões em 2022 (mais 60% do que em 2020).

"Hoje tem-se mais consciência daquilo que está a criar mal-estar e as situações ficam mais visíveis", afirma o bastonário da Ordem dos Psicólogos. "Por isso", diz, "há uma exigência maior sobre as lideranças".

"As situações de stresse ou burnout são responsáveis por 50% a 60% do absentismo laboral"

E se há 40 ou 50 anos se tolerava quase tudo, a geração Z (nascida entre a segunda metade dos anos 90 e 2010) já não está para isso. "Esta diferença coloca um desafio maior a quem gere pessoas, porque os trabalhadores saem, mesmo que para o desemprego, porque não querem ser maltratados". A consequência é que em algumas áreas vai rareando talento.

Isto e muito mais veio trazer um mundo de novas oportunidades para os psicólogos, que hoje estão em áreas como as tecnologias, a inteligência artificial ou a cibersegurança, onde o comportamento é um factor chave. E é por isso que também deviam estar no governo, não para ouvir ministros ou directores-gerais no divã, mas para ajudar "no desenho das políticas públicas", que poderiam assim tornar-se mais eficientes.

Começo por um tema que tem dominado a actualidade. A Igreja anunciou há um mês a criação de uma bolsa de psicólogos para ajudar as vítimas de abusos sexuais. Já está em marcha, a Ordem foi contactada?

Não temos, para já, conhecimento de nada, a não ser o que vem na comunicação social. Mas posso acrescentar que fazemos com muitas organizações uma coisa simples: a entidade vem ter connosco, porque gostaria de ter acesso a um conjunto de psicólogos disponíveis para certa intervenção em determinadas condições, e a Ordem ajuda a definir critérios, serviços e encontrar psicólogos disponíveis.

O importante é que as vítimas de violência de qualquer tipo tenham acesso a apoio, a absolutamente tudo o que possa ser feito para garantir acompanhamento. Isso ser feito por entidades que possam ter tido responsabilidade nessa violência parece-me natural, mas o que é importante é que as vítimas tenham real acesso a intervenção psicológica continuada.

Têm à entrada do edifício, numa das janelas grandes que dá para a rua, uma informação a dizer que o stresse e os problemas de saúde mental custaram às empresas portuguesas 5,3 mil milhões de euros no ano passado. Como são feitas as contas?

Fazemos um cruzamento de dados oficiais: estatísticas do INE [Instituto Nacional de Estatística], Índice de Saúde Sustentável da Universidade Nova - que conclui que por motivos de saúde perdeu-se o equivalente a 15,8 dias de trabalho em Portugal, em 2021 -, e sexto Inquérito Europeu sobre as Condições de Trabalho - que diz que as situações de stresse ou burnout são responsáveis por 50% a 60% do absentismo laboral.

E estimamos que em Portugal os trabalhadores faltam oito dias por ano devido ao stresse ou problemas de saúde psicológica. Assumimos ainda que o presentismo [estar no local de trabalho sem a produtividade correspondente] pelos mesmos motivos pode custar duas vezes mais do que o absentismo.

"Antes as pessoas só deixavam a empresa se tivessem alternativa. A geração Z prefere o desemprego a ser maltratada"

Mas o que está na origem desses problemas, sabe-se?

Hoje tem-se mais consciência daquilo que está a criar mal-estar do que se tinha antes. Por muito que ainda tenhamos défices, há mais literacia a este nível, as situações ficam mais visíveis. O relatório também mostra que há uma correlação bastante grande entre estes impactos psicológicos e a doença física. Muitas vezes as pessoas só dão conta quando têm manifestações físicas, não associam ao que se estava a passar no trabalho. Como hoje há mais consciência, deteta-se mais cedo o problema. E também se tolera menos, porque se conhecem as consequências disso e já não se está disponível para aceitar ou, pelo menos, para aceitar tanto durante tanto tempo.

Há um perfil mais ou menos tolerante, mais ou menos submisso às chefias?

Posso dizer que há uma diferença geracional nisto, que já se assistia nos millennials [nascidos entre 1980 e 1996], mas que se vê-se mais na geração Z. Ou seja, antes as pessoas podiam até dizer "eu não aceito isto", mas depois não se passava nada, ficava tudo na mesma. Agora o comportamento mudou. A geração Z pensa e faz: "Não estou para isto, portanto, vou-me embora". E vai embora, quando antes os trabalhadores só saíam quando já tinham condições, quando já tinham outro trabalho. A geração Z sai mais vezes, mesmo sem a garantia de ter uma alternativa.

Esta diferença coloca um desafio maior a quem gere pessoas, porque já não pode jogar com esta variável, "não vai embora porque não tem para onde ir". Porque estas pessoas saem mesmo que vão para o desemprego, porque não querem ser maltratadas. Porque, na prática, é disso que estamos a falar, de uma mudança de prioridades. O facto de uma pessoa se sentir esgotada com o trabalho é razão para deixar o emprego; o facto de a organização não dar importância às questões da saúde mental, especificamente, é razão para deixar o emprego. E mais, ter preocupações com a saúde mental é razão diferenciadora para ir trabalhar para determinado local.

As empresas percebem que isto tem consequências para o seu negócio?

Isto significa que no mercado de trabalho, em algumas áreas, vai rareando talento, porque a mobilidade é muito maior, há uma competição a nível internacional. Em muitas áreas as organizações vão ter, inevitavelmente, de passar a gerir tendo em conta estes factores, que já não é possível ignorar. Há uma exigência maior sobre as lideranças, que têm de ter competências que não tinham, aquelas que podemos olhar como sendo mais sócio-emocionais: relacionais, trabalho em equipa, empatia, características que até há poucos anos importavam pouco.

Hoje, nos relatórios que fazem a análise das competências mais procuradas no mercado de trabalho, nos top dez ou nos top vinte mais de metade são competências deste género, estão a par das competências tecnológicas. E isso era inimaginável. A verdade é que deixou de ser possível ter uma organização eficiente se não se consegue vincular talento. E estou a utilizar propositadamente a palavra vincular, e não reter, porque o que se fazia anteriormente era isso: como fazemos para reter talento na organização? E a questão está nesse conceito, não se retém. Vincula-se, as pessoas têm de gostar, têm de querer, têm de se sentir vinculadas ao local, e isso é muito mais difícil de fazer.

"Há uma exigência maior sobre as lideranças, que têm de ter competências como empatia, que estão a par das competências tecnológicas"

Mas também há o contrário, aqueles que procuram um vínculo para não ficarem "descalços", para usar um termo mais coloquial. Via-se muito na função pública.

Sim, mas também já não é exactamente como era. Haverá pessoas que estão vinculadas e escolheram uma ligação à administração pública pela estabilidade que esse vínculo lhes dá. Isso faz com que abdiquem de muita coisa antes de colocarem o vínculo em causa. Podem até não estar satisfeitas, podem até já estar numa situação de presentismo, às vezes muito frequente, mas aguentam tudo, sacrificam tudo por essa estabilidade. Mas essa é outra diferença geracional; para as novas gerações essa coisa da estabilidade já não tem a importância que tinha, por exemplo, para a geração X [de meados da década de 1960 até 1979], que é a minha.

Hoje não há previsibilidade, o futuro é adivinhação. A mobilidade também aumentou muito e isso coloca desafios tremendos. O que sabemos é que continua a haver uma correlação entre motivação, bem-estar e produtividade. E já se sabe há muito tempo que o reconhecimento do trabalho, também por via financeira, mas não só - o reconhecimento das competências, a oportunidade de se desenvolver, de florescer, de criar, o sentido de pertença -, promovem a motivação, o bem-estar, a produtividade. No entanto, as práticas de gestão não acompanharam assim tanto esta tendência.

Porquê, qual o motivo deste desfasamento?

Julgo que as empresas não fazem mais porque as lideranças começam a ficar desfasadas, há lideranças que não são competentes para lidar com os desafios do momento. E competência envolve muitas vezes conhecimento, no sentido de domínio e compreensão de que este tipo de práticas faz as organizações perderem dinheiro. As empresas, e conheço várias, que não querem fazer avaliação dos riscos psicossociais - carga de trabalho, exigência cognitiva, conciliação do trabalho com vida pessoal -, só estão a ignorar o problema, a varrer para debaixo do tapete.

Neste momento começa a ser um pouco mais difícil disfarçar, porque se a rotatividade aumenta nas empresas, se é difícil vincular talentos, isso começa a ver-se. E é isso que está a obrigar algumas organizações a fazer mudanças em termos de gestão. É um processo que está muito no início, mas já começa a notar.

É possível estabelecer um prazo no tempo para essa mudança ser efetiva?

Acho que dentro de alguns anos vai ser possível olhar para trás e ver diferenças significativas face àquilo que existe hoje. Tenho a convicção, pela tendência a que estamos a assistir e tendo em conta que os desenvolvimentos nestas áreas acontecem também por disrupções, que a situação será significativamente diferente daqui a dez anos.

Isso não significa que nessa altura tenhamos a maioria das organizações com boas práticas de gestão a este nível, porque as organizações são muitas, porque competem entre si, porque surgem novas questões. E acho que há um dado europeu que já nos permite ver alguma diferença: há dez anos 10% das organizações tinham algum tipo de prevenção destes riscos psicossociais. Dados mais recentes apontam para 20%. Ou seja, numa década houve este crescimento. Portanto, acho que é seguro dizer que daqui a dez anos será significativamente diferente. Se 30% ou 40%, não sei. Mas se forem 50% estamos a assistir a uma transformação muito grande. Se olharmos para trás, morrer no trabalho já foi uma banalidade.

"A semana dos quatro dias não é uma fórmula mágica"

Quais são atualmente as principais más-práticas nesta matéria?

É difícil escolher. Até há bem pouco tempo o trabalho estava muito pouco amigo dos equilíbrios com a vida pessoal e familiar. Não é por acaso que foi por aí que muitos governos, incluindo o nosso, começaram a tentar impor algum tipo de regras. Mesmo as que vieram através da imposição da União Europeia, a verdade é que foram acontecendo. E isso pôs a nu outras falhas, lideranças mais tóxicas, lideranças controladoras, que não desenvolvem nem permitem o desenvolvimento das pessoas, incapazes de delegar, práticas até um pouco erráticas, mas que têm que ver com grandes inseguranças, e que são absolutamente destrutivas para as pessoas. Ou a questão das tarefas rotineiras, que vem provavelmente das características do tecido económico português, com menor automatização em comparação com outros países.

Aproveito para lhe perguntar qual o posição da Ordem dos Psicólogos em relação à semana de quatro dias. Prós e contras?

A semana dos quatro dias não é uma fórmula mágica, não vem resolver todos os problemas que as pessoas têm no trabalho. O trabalho por turnos, por muito que seja necessário em diversos tipos de atividade, tem riscos associados e exige medidas de compensação para a recuperação destas pessoas. Para algumas organizações poderá vir a reduzir alguns riscos e até a melhorar o bem-estar e a produtividade, mas isso não significa que sirva para tudo e para todos.

Os testes são muito importantes para se conhecer um bocadinho mais os impactos. Uma semana de quatro dias que signifique efetiva redução do número de horas mensal de trabalho com manutenção da remuneração significa que a pessoa terá mais descanso para recuperar da carga de trabalho. Isso significa mais bem-estar, logo, à partida, mais produtividade.

Mas quando os fatores de risco são outros, por exemplo, as tais lideranças mais tóxicas, a semana de quatro dias não vem resolver essa questão, a toxicidade mantém-se lá.

Gostaria de falar agora sobre a profissão, já explico porquê. Quantos psicólogos existem em Portugal?

Há 26 mil psicólogos inscritos na Ordem, o que é obrigatório para o exercício da profissão em qualquer área. Aqui estão incluídos os que possam ter suspendido por não estarem no exercício da profissão ou os que estão a fazer o ano profissional júnior, ou seja, o estágio de acesso.

Isso é muito ou pouco? Lembro-me que a A3ES a certa altura proibiu mais cursos de Psicologia, numa altura em que havia muitos psicólogos no desemprego. Como é na Europa?

Em 2017/18 o desemprego que tínhamos na profissão, de acordo com o censo que fizemos, andaria pelos 11% a 12%. Portanto, era muito. Fizemos um estudo em setembro de 2021 que comparava o desemprego na profissão em 2019 e em 2021 - em 2019 já andaria à volta dos 4%, em 2021 passou para 1,6%, era residual. A pandemia levou a um aumento da procura, abriu oportunidades em várias áreas. É possível e natural, diria eu, que possa haver um ajustamento por cima deste valor, porque 1,6% é mesmo muito residual.

Agora, a verdade é que existem 31 cursos de Psicologia em Portugal. Não são poucos, e na comparação com os outros países da Europa são bastantes cursos de Psicologia. Não somos o que tem mais por habitante, mas já fomos. Quando a Ordem foi criada [2008], existiam em Portugal 38 cursos e, nessa altura, éramos o país da Europa com mais cursos por habitante.

Neste momento, o grande problema é que uma oferta tão grande cria uma pressão de desvalorização sobre a profissão, temos muita precariedade.

Bastonário
Bastonário créditos: Tomás Carrança

Um psicólogo entra na profissão a ganhar quanto?

Depende da área. Na área social, entra a ganhar 800 ou 900 euros. Se consideramos que todos entram na profissão através do ano profissional júnior, entram a ganhar à volta dos 900 euros, não deve variar muito. A seguir a isso haverá alguma evolução, o ordenado médio dos psicólogos deve andar nos 1200€.

A precariedade é o problema que ainda subsiste, e não estou a pôr aqui o trabalho como profissional liberal, estou a falar dos que trabalham por conta de outrem. Temos ainda uma necessidade grande de valorização salarial; não estamos isolados do contexto económico português, porque é uma profissão que tem uma elevada especialização e vê-se pouco o reflexo disso nos vencimentos.

Há coisas que melhoraram entretanto e que no médio prazo podem vir a ter efeitos de valorização. Por exemplo, em Novembro de 2021 começou a haver cobertura, por parte das principais seguradoras no mercado, para as consultas de Psicologia. Isso impacta muitos psicólogos, porque a maior parte está a trabalhar na área clínica da saúde, uma boa parte no privado. Só em novembro de 2022, um ano depois, é que a seguradora com maior quota de mercado viu as suas apólices todas a cobrir consultas de Psicologia, e só a partir de Fevereiro de 2023 é que a segunda maior seguradora começou a cobrir as consultas de Psicologia. O que significa que daqui a mais ou menos um ano já poderemos dizer que temos 70% ou 80% do mercado segurador a cobrir consultas de Psicologia, e isso será uma grande diferença.

"Existem 31 cursos de Psicologia em Portugal. Não são poucos, mas já foram mais"

Afirmou que a maior parte dos psicólogos trabalha na área clínica da saúde, no privado. E qual é a relação com o Serviço Nacional de Saúde?

Estamos numa nova fase. A relação que temos desde há muito pouco tempo com a nova estrutura da direção executiva do SNS é proporcionalmente muitíssimo melhor, para o pouco tempo que tem, do que aquela que alguma vez existiu. Mas ainda é cedo para avaliar. A anterior equipa ministerial era muito intermitente na forma como respondia ou escutava as coisas. Teve uma fase, quando foi o pico no início da pandemia, em que nos pediu ajuda relativamente ao que foi a criação da linha de apoio psicológico do SNS 24. Correspondemos, a linha foi criada, mas durante a maior parte do tempo sentíamos pouca abertura para fazer algumas coisas em concreto.

Penso que o problema, basicamente, é que durante muitos anos nunca foi prioridade do SNS apostar na Psicologia e nos psicólogos. Durante a pandemia foi um sufoco, o que eu vi foi uma incapacidade do SNS para resolver problemas, particularmente na proximidade, nos centros de saúde. Pouco ou nada se fez, a resposta foi residual. Pelas contas que agora se fizeram, entraram 60 psicólogos durante a pandemia. Houve a linha, que foi uma iniciativa positiva, mas não podemos ficar por aí, porque isso é uma resposta de emergência para questões agudas, não dá para outro tipo de intervenção. É muito curto.

Chega a ser difícil explicar como é que durante tantos e tantos anos, pelo menos desde há sete anos, os governantes disseram que são necessários muito mais psicólogos no SNS e que não haja quase nenhuma ação concreta para que isso se torne realidade. Depois, misturam-se coisas como uma máquina administrativa e burocrática, que está absolutamente anacrónica na administração pública, particularmente no que diz respeito à forma como são feitas as contratações - o que está muito relacionado com a organização das carreiras no SNS, anacrónica também, e que, apesar das promessas, nunca foi alterada.

A Psicologia clínica e da saúde não é equiparada a qualquer especialidade médica ou clínica. Porquê? Já falou com este ministro da Saúde sobre isso, o que diz Manuel Pizarro?

Já. Reconhece que seria justo alterar temas como a questão da carreira, que as diferenças salariais existentes para pessoas que estão a fazer exactamente a mesma coisa não fazem sentido e que o facto de não ser reconhecida a especialidade da Ordem dentro do SNS é uma coisa um bocado obtusa. Ou seja, quando a Ordem foi criada já existia esta carreira que tinha o grau de especialista. Nunca foi atualizada. Por lei a especialidade passou a ser atribuída pela Ordem, mas para o SNS continua tudo a funcionar como se nada tivesse mudado. O que significa que as pessoas obtêm na Ordem a especialidade, mas, para efeitos práticos, no SNS é como se não a tivessem. O ministro disse-nos que achava que esta equiparação devia ser feita, ou seja, que devia haver esse reconhecimento por parte do SNS.

A questão, agora, não é se concorda ou não concorda, é se acontece ou não acontece. Penso que teremos de aguardar alguns meses para ver o que vai acontecer. Pela nossa parte entregámos um plano de ação que nos foi pedido ao governo, com algumas metas, e que vamos agora negociar. Há muitas coisas pendentes na nossa área: o reforço do número de psicólogos no SNS, a resolução destas injustiças todas, que criam um mal-estar tremendo entre os profissionais e que leva muita gente mais velha a sair (porque há procura no privado). Em alguns serviços foi uma debandada, o privado não está sujeito a estes concursos centralizados, pode contratar com facilidade e rapidamente. Quem são os psicólogos que aceitam trabalhar para o SNS com os salários que são pagos e as perspetivas que têm? São os psicólogos um pouco mais jovens ou os que estão a trabalhar na área social, onde se ganha menos.

Neste momento, e é esse o nosso alerta, o principal problema para a população é que não são contratados psicólogos para os hospitais e para os centros de saúde. Sem ovos não há omeletes. Os médicos de família dizem a mesma coisa, não têm forma de referenciar para psicólogos. Porque das duas uma: ou não têm nenhum para quem encaminhar, ou quando têm a lista de espera é de seis meses a um ano (e depois da primeira consulta, dependendo dos sítios, podem ter esperas equivalentes).

Há uma desconsideração em relação ao psicólogo no SNS, sente isso? Não são médicos, não têm autonomia fora de determinados serviços...

Não acho que se possa dizer que existe uma desconsideração. Acho que não existe ainda uma valorização dos atos em si, que devia existir, mas desconsideração não. Acho que há um reconhecimento muito visível - que se faz naquilo que é simbólico, e temos centenas de exemplos disso, em crescendo, o mais visível foi a criação do Dia Nacional do Psicólogo, que é recente.

"Desde 2008 que a lei diz que é a Ordem que atribui a especialidade, mas o SNS continua sem a reconhecer"

Há o Dia Nacional do Cardiologista ou do Psiquiatra ou do Neurologista?

Não. Mas isso significa que foi importante para alertar para a necessidade desse reconhecimento. Se me tivesse feito essa pergunta na altura em que foi criado esse dia, a minha resposta era sim. Porque evidentemente que sim. Já foi há uns anos, houve uma pandemia pelo meio e a resposta já não pode ser a mesma, pelo reconhecimento mesmo muito grande a que se assiste de forma geral. Isso não quer dizer que não existam áreas e locais de trabalho onde o reconhecimento destes profissionais é insuficiente.

Dos 26 mil psicólogos quantos estão no SNS?

Mil. Sendo que desses nos centros de saúde estão só 300.

E nas escolas, onde sempre foram precisos, mas depois da pandemia, dizem os estudos, são mais necessários do que nunca?

Nas escolas a situação melhorou bastante. O lado bom das escolas é tinham 700 psicólogos há cinco ou seis anos e agora têm mais de 1700, aproximamo-nos dos melhores rácios recomendados internacionalmente. Tomara nós ter tido uma evolução destas na saúde.

É engraçado ouvir isso, porque as escolas, professores e pais, dizem que faltam psicólogos. Porquê, consegue explicar?

A questão é o que queremos que os psicólogos façam nas escolas. O que está acordado com o Ministério da Educação é que o trabalho dos psicólogos tem como principal objetivo a prevenção e promoção do desenvolvimento de competências socioprofissionais nas crianças e jovens. Ou seja, trabalhamos os termos da relação pessoal, da relação emocional, da assertividade, das competências. Isto e mais o trabalho de apoio à direção da escola na construção do projeto educativo.

São ações mais universais, que conseguem chegar a muito mais pessoas da comunidade educativa, sejam alunos ou professores ou técnicos. Não são ações de um para um. Ou o que queremos é que as escolas se substituam aos centros de saúde? Porque o que está a acontecer é que está-se a meter os psicólogos das escolas a fazer o que tem de ser feito no centro de saúde. E para isso não chegam. Não chegam e, nesta lógica, se meter lá mais mil, vão continuar a ser poucos. A escola não é o contexto para se fazer trabalho clínico, que deve ser feito dentro de uma equipa clínica, onde há o psicólogo, o médico de família, a enfermeira e os outros profissionais do centro de saúde.

A questão é que enquanto não se resolver o problema dos centros de saúde, nas escolas não se está a fazer o que se devia fazer. Porque estamos só a remediar, e o trabalho dos psicólogos não é para isso.

"Até Novembro de 2022 deram entrada 135 processos de averiguação de alegada usurpação de título, 70 foram encaminhados para o Ministério Público"

Lembrei-me agora das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e de algumas decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que condenou diversas vezes o Estado português por tirar filhos aos pais em vez de lhes dar condições. Estas questões são debatidas, mudam-se ou adequam-se comportamentos em função destes acórdãos ou fica tudo na mesma?

Não tenho informação específica de que essas decisões estejam a ser reflectidas na mudança de prática. Mas também não dou de barato que haja um certo tipo quase normativo de recomendação ou parecer por parte das comissões ou dos técnicos que vão aos tribunais. Certamente poderá acontecer, em algumas situações, provavelmente, aconteceu mesmo, mas noutras poderá não ter acontecido. Conheço situações em que o tribunal segue as recomendações técnicas dos peritos, sejam das comissões ou outros, mas também conheço situações em que o tribunal não o faz e decide mais pela sua crença do que outra coisa. E sei ainda, e isso acaba por chegar à Ordem, de recomendações que são feitas e cuja evidência técnico-científica deixa muito a desejar, e aí confere um problema.

Qual é o procedimento da Ordem nos casos de má prática?

O procedimento é quase automático. Quando nos chega uma situação levantando a hipótese ou apontando o dedo a uma má prática, seja por parte de um tribunal, de um advogado ou de qualquer outra pessoa, o processo entra automaticamente no Conselho Jurisdicional. E é o conselho que analisa e aplica, caso seja essa a conclusão, uma sanção. Em 2022 o conselho recebeu 150 queixas e o número de processos alvo de apreciação em Dezembro era 196, incluindo processos que transitaram de anos anteriores. No ano passado foram arquivados 60 processos e foi aplicada sanção em 11 casos. Até Novembro de 2022 deram entrada 135 processos de averiguação de alegada usurpação de título, 70 foram encaminhados para o Ministério Público.

"Estes profissionais orientam-se muito - na minha opinião desproporcionadamente -, para a área clínica e da saúde em detrimento de áreas como as tecnologias, a inteligência artificial, a cibersegurança"

Diz que os psicólogos estão muito concentrados na área clínica e da saúde. Porquê, se existem outras especializações? As faculdades, os institutos, não deviam ter aqui um papel?

Sim. Ao longo do seu percurso as escolhas destes profissionais orientam-se muito - na minha opinião desproporcionadamente -, para a área clínica e da saúde em detrimento de outras áreas, por exemplo, da área organizacional. A área organizacional tem uma capacidade, um interesse em absorver profissionais para os mais diversos tipos de intervenção, superior à da saúde. Mas são muito poucos os profissionais na área das organizações, e os que lá estão trabalham em consultoria, em coaching, mais recentemente na área dos riscos psicossociais, na área da saúde mental no local de trabalho. Mas a necessidade de psicólogos nesta área vai muito além disso, se formos para áreas ainda mais de nicho, onde há ainda menos profissionais disponíveis, estamos a falar do marketing, das tecnologias, da inteligência artificial, da cibersegurança, onde o comportamento é um factor relevante. E não há psicólogos aí, são mesmo muito poucos.

Por isso perguntava se a escola não tem aqui um papel...

Pode haver um contributo, por exemplo, com mestrados nas áreas identificadas. Mas julgo tem de se acelerar a velocidade de adaptação, porque a situação de onde partimos é de tal ordem que, se não formos rápidos, é muito difícil fazer esta compensação. Não quer dizer que não se esteja a assistir em algumas escolas de psicologia a alguma adaptação face a isto, mas tem de ser mais rápida. Por isso a Ordem também tem tentado ajudar os psicólogos a desenvolverem algumas competências de modo a poderem trabalhar noutras áreas, a mudar os seus percursos e a ir ocupando outros espaços.

"O governo necessita tanto de psicólogos como as outras organizações. No desenho das políticas públicas é muito mais importante do que se possa pensar à primeira vista"

Qual a relação da Ordem dos Psicólogos com a Assembleia da República, costuma ser ouvida ou não é tida nem achada em matérias que têm a ver com questões comportamentais, por exemplo, ou que têm um forte impacto psicológico, como o aborto, a eutanásia ou questões de género, para dar alguns exemplos?

Nós monitorizamos as discussões que estão a ser feitas no Parlamento e, quando temos algo a dizer, se não somos chamados, fazemo-nos convidados. Por exemplo, participámos na discussão a propósito da agenda do trabalho digno, com alterações na legislação, junto dos grupos parlamentares e junto do governo. No caso da morte medicamente assistida tínhamos uma palavra a dizer e fizemo-nos ouvir; aí o importante foi acautelar o conhecimento sobre matérias como o sofrimento, agora tão em cima da mesa, e a intervenção de um psicólogo no processo, dar ao legislador informação sobre os processos de tomada de decisão nestas matérias. No fundo, compilar a evidência científica mais robusta e informar o Parlamento, como aconteceu com a lei das barrigas de aluguer ou a coadopção por casais do mesmo sexo. E nas últimas eleições legislativas, já tínhamos feito nas anteriores, organizámos nas nossas instalações um debate com representantes dos partidos à volta da nossa agenda, transmitido online.

Falámos de psicólogos nas organizações. Também devia haver psicólogos no governo?

Existem psicólogos na política, vereadores, e nos gabinetes do governo também.

A ouvir políticos no divã ou a trabalhar em políticas públicas?

[Ri] O governo necessita tanto de psicólogos como as outras organizações. No desenho das políticas públicas é muito mais importante do que se possa pensar à primeira vista. No Reino Unido existe essa figura há bastantes anos, uma equipa que tem psicólogos, economistas, antropólogos, especializada em ciência comportamental, que o que faz é correr a pente fino as diversas políticas públicas e detectar oportunidades de, com base no conhecimento científico, as tornar mais efectivas. Isto é uma coisa que tem dado provas no Reino Unido e o modelo tem vindo a ser espalhado pelo países da Commonwealth. Nos Estados Unidos, dependendo da administração, há algum tempo que isto existe. Utilizam isto também para questões que têm a ver com a eficiência de serviços e a poupança de recursos da administração pública. Os resultados são impressionantes, há uns anos os números apontavam para poupanças da ordem dos mil milhões com medidas destas, que se caracterizam por ter um baixíssimo investimento - pode ser mudar o texto de uma carta, basta pensar no que são as notificações dos tribunais, muitas impossíveis de compreender por uma parte da população. Uma das coisas muito estudada, e foi feita com esta unidade, foi a comunicação das consultas nos centro hospitalares, o tipo de SMS que levaria a que as pessoas faltassem menos às consultas e exames. Não basta fazer igual, porque o que funciona melhor num contexto pode não resultar noutro, por isso se fazem testes com amostras representativas, que só depois se escalam. Falta fazer isso por aqui.