O popular youtuber Felipe Neto ficou espantado quando a polícia bateu à sua porta para informá-lo de que tinha sido denunciado por atentar contra a segurança nacional.
Poucos dias antes, Neto havia chamado o presidente Jair Bolsonaro de "genocida" pela sua gestão da pandemia do coronavírus, que deixou mais de 290 mil mortes no Brasil. O vereador Carlos Bolsonaro, estratega das redes sociais do seu pai, pediu uma investigação à polícia.
De imediato, as redes sociais foram inundadas com mensagens de apoio a Neto, replicando o adjetivo "genocida" e as críticas do influenciador digital de 33 anos, com mais de 41 milhões de seguidores no YouTube e 12,4 milhões no Twitter.
Uma juíza suspendeu a investigação na quinta-feira, por considerá-la ilegal, e Neto anunciou que financiaria um grupo de advogados para defender gratuitamente os que são processados por críticas ao governo.
Os ataques, todavia, não se limitam a opositores políticos. Jornalistas, artistas e cientistas também denunciam ataques coordenados por "milícias digitais" bolsonaristas para destruir sa ua reputação.
A cardiologista Ludhmila Hajjar, que Bolsonaro sondou neste mês como possível ministra da Saúde, foi ameaçada de morte após questionar o uso de medicamentos sem comprovação científica promovidos pelo presidente contra o coronavírus e por defender as restrições à circulação para conter infecções.
Houve, inclusive, a tentativa de invadir o hotel onde a cardiologista estava hospedada em Brasília. Hajjar relatou o ocorrido a Bolsonaro, que, segundo a médica, respondeu: "Faz parte".
Resquícios da ditadura
"Como é que ele gostaria que eu me referisse ao Presidente da República? Um presidente que chamou reiteradamente a maior pandemia vista em muitos anos de 'gripezinha', um presidente que incentiva todos a sair na rua como se nada estivesse acontecendo, desde o dia um, que provocou aglomerações em todos os momentos da pandemia?”, questionou Neto.
A queixa contra Neto invocou a Lei de Segurança Nacional (LSN), implementada pelo regime militar (1964-85) para perseguir adversários políticos e que continua em pleno vigor na democracia. E, com frequência cada vez maior, a lei está a ser usada para "coibir dissensões na prática", diz Thiago Amparo, advogado e professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), que a considera institucional.
Os meios de comunicação brasileiros noticiaram esta semana que o Ministério da Justiça pediu à Polícia Federal (PF) que abrisse um inquérito contra um sociólogo de Palmas, por "crimes contra a honra" do presidente, através da contratação de outdoors com fotos do presidente acompanhadas por frases como "mente", "Não vale um pequi roído" ou "Vaza, Bolsonaro".
A PF também se encontra a investigar Ciro Gomes, terceiro colocado nas eleições presidenciais de 2018 e membro do Partido Democrático Trabalhista, por "crimes contra a honra", já que descreveu Bolsonaro como "ladrão" e denunciou supostos esquemas de corrupção na família do presidente, informou a imprensa neste sábado.
"Estamos num momento bastante delicado, porque Bolsonaro é o tipo de liderança que mina a democracia por dentro", diz Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, especializado em questões de segurança e desenvolvimento.
Embora tenham existido desde sempre violações dos direitos humanos, como ameaças contra ativistas ambientais, brutalidade policial e uma situação degradante nas prisões, durante o regime democrático, desde que Bolsonaro assumiu o poder, em 2019, "houve uma erosão democrática muito forte", disse Szabó à AFP.
Bolsonaro nomeou figuras-chave para a Polícia Federal, o Ministério Público, tribunais e outros órgãos de controlo, que segundo analistas, podem ajudá-lo a proteger a si e a sua família de investigações. "É um líder populista autoritário com um perfil clássico. Ele não aceita dissidências. Ou você é 100% leal ou você é inimigo", define Szabó.
A situação incentivou uma "fuga de cérebros" do Brasil, segundo ela, que também deixou o país, após sofrer ameaças por se opor às políticas armamentistas e repressivas do governo em matéria de segurança.
A antropóloga e advogada Débora Diniz também se exilou após agressões pelo seu ativismo a favor da legalização do aborto. O ex-parlamentar de esquerda Jean Wyllys renunciou ao mandato em 2019 e mudou-se para a Europa, após uma campanha de 'notícias falsas' que o associou à pedofilia e sob ameaças de morte.
No boletim que será publicado em abril (GPS do Espaço Cívico), o Instituto Igarapé identifica mais de 200 "ataques ao espaço cívico" entre 1 de janeiro e 10 de março de 2021, entre campanhas de desinformação, intimidação e abuso de poder.
O governo federal é responsável por 55% dos ataques, segundo o relatório. "Se continuarmos sem um freio real das instituições, há risco de ruptura democrática", avisa Szabó.
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