Forrado com fotos de antigos campeões de pugilismo, cartazes de combates, taças e até robes e luvas de outros tempos, o ginásio da Associação de Boxe Paulo Seco fica numa das pracetas centrais do bairro.
Lá fora, à direita e à esquerda, o tráfico decorre a céu aberto, encostado a automóveis, com bocas de droga porta sim, porta não. E vem-nos à memória o antigo Casal Ventoso.
“Estão debaixo da ponte, atrás de um carro, à porta de um prédio […] a fazer os seus consumos. […] É degradante, para quem vê e para quem passa”, constata o presidente da academia, Paulo Seco.
Nascido e criado no Casal Ventoso, agora Quinta do Loureiro, é-lhe difícil achar palavras para descrever o regresso à casa de partida. “Andei 40 anos para trás”, lamenta, recordando que quando era miúdo chamavam campo da lixívia àquela zona, um descampado onde se jogava à bola.
Para Paulo, que começou a praticar boxe aos 8 anos, a saída do Casal Ventoso foi uma mudança “radical” para os habitantes, que não tinham água canalizada, saneamento básico, “rigorosamente nada”. Na passagem para a Quinta do Loureiro, passaram também a viver “em prédios com dignidade”.
“Esse é o nosso medo, que o passado volte a repetir-se”
Hoje com 52 anos, o treinador de boxe deplora o presente das crianças e jovens da zona, que têm de conviver com a droga e o que ela traz.
“Esse é o nosso medo, que o passado volte a repetir-se”, reconhece Elsa Belo, diretora da Ares do Pinhal, organização não-governamental gestora do Serviço de Apoio Integrado, única unidade fixa dirigida às pessoas que consomem drogas, situada na Quinta do Loureiro.
“Precisamos de medidas especiais para o que se está a começar a viver aqui”, invoca, assumindo o receio de ver o bairro “novamente a ser fustigado, de forma incontrolável, pelo problema do consumo”.
A Quinta do Loureiro, diz, “sempre teve a presença de consumos”, mas há hoje “mais pessoas a usar drogas”, embaladas por um “contexto social favorável” a que isso aconteça.
À frente do novo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), João Goulão considera que “faz todo o sentido” existir uma unidade de apoio na zona, “onde os consumos e o pequeno tráfico sempre estiveram presentes”.
Simultaneamente, deve haver “uma diversificação deste tipo de respostas, para que [essa mesma zona] não se constitua como um polo de atração e de concentração”.
O médico entende, por isso, que “é importante” existirem respostas semelhantes “noutros pontos da cidade e, eventualmente, em municípios limítrofes”.
Com sede na Quinta do Loureiro, há muitos anos que os Médicos do Mundo assistem às dinâmicas do consumo. Bruna Alves, assistente social na organização não-governamental, confirma que tem havido, “de facto, um aumento do consumo” e destaca “a descida do Casal Ventoso para a Avenida de Ceuta”.
Nesta movimentada artéria, já não se acumula o número de consumidores na via pública que vinha sendo notado há meses por quem ali passava.
Carta aberta sobre o “aumento do número de pessoas a realizarem consumo de substâncias psicoativas a céu aberto”
Na sequência de uma carta aberta, assinada em janeiro por dois presidentes de junta (Alcântara e Campo de Ourique, ambas PS) e várias associações, alertando para o “aumento do número de pessoas a realizarem consumo de substâncias psicoativas a céu aberto e em fracas condições de salubridade”, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) colocou, um mês depois, um novo gradeamento no viaduto pedonal que atravessa as duas margens da Avenida de Ceuta, emparedando o vão da passagem.
Ao mesmo tempo – adianta a autarquia, em resposta à Lusa –, mandou retirar, na Quinta do Loureiro, “diversos veículos abandonados e um atrelado que eram utilizados como espaços de consumo e venda” de droga.
A CML refere que “são inúmeras as intervenções” que tem realizado no bairro, nomeadamente de limpeza.
Não é esse o cenário encontrado pela Lusa, em finais de fevereiro: o lixo praticamente cobre então a relva que separa a Quinta do Loureiro da Avenida de Ceuta. Porém, quem ali vive e trabalha garante que a carta gerou reação, do município e da polícia, que já tem fechado a entrada no bairro.
“Quando passa o autocarro na Avenida de Ceuta e se vê pessoas a consumir na via pública, isso cria medo, instabilidade. Isso também é um problema de saúde pública”, observa Elsa Belo.
A autarquia realça que está “a fazer mais” do que lhe compete e que, nos dois últimos anos, “esteve sozinha no apoio às diversas instituições com intervenção no terreno”.
Recordando os “apelos sucessivos” ao Governo, acusa a administração central de estar “parada” e reclama ter-se visto “obrigada a financiar a 100% as respostas existentes, quando caberia ao Governo financiar 80% e à CML apenas 20%, nos termos do protocolo celebrado” com o ICAD em dezembro passado.
O protocolo prevê a duplicação da oferta da sala de consumo assistido e a criação de uma nova sala na zona oriental da cidade. João Goulão reconhece, porém, que “alguns pressupostos” do novo instituto “ainda não estão cumpridos”, como a aprovação de um orçamento, o que impede o alargamento das respostas.
“Não enjeito […] algumas dificuldades que temos tido”, admite, sublinhando a “colaboração muito estreita com a câmara” para encontrar “as melhores respostas possíveis”.
São precisas “medidas mais musculadas” para impedir um novo "o hipermercado da droga”
A CML “está atenta ao fenómeno”, reconhece Elsa Belo, que também nota a ausência da administração central e pede ao ICAD “medidas mais musculadas”, que impeçam que ali “se instale novamente o hipermercado da droga”.
Ainda faltam uns minutos para as 10:00 e já duas dezenas de pessoas aguardam a abertura do Serviço de Apoio Integrado, que disponibiliza salas de consumo assistido.
O espaço “não é suficiente para as pessoas que precisam deste apoio”, constata Elsa Belo, pedindo mais unidades e o alargamento do tempo de funcionamento da atual. A técnica reconhece que “as coisas têm mudado bastante” e destaca o aumento da procura pelo consumo fumado.
Aquando da visita da Lusa, os seis lugares disponíveis na sala para um consumo fumado de meia hora têm, 10 minutos depois da abertura de portas, uma lista de espera de 12 pessoas.
“Temos necessariamente que aumentar este número, porque, enquanto este número não for aumentado, as pessoas vão continuar a fazer esse consumo aqui à volta. Nós queremos trazer as pessoas para dentro”, assume Elsa Belo.
Quando o Casal Ventoso foi demolido, o consumo em Lisboa disparou para outros bairros. “Começaram a limpar essas zonas e depois voltou tudo para aqui. A minha teoria é que é mais fácil concentrar tudo num bairro só do que espalhar por Lisboa inteira”, partilha Paulo Seco, para quem a saúde pública é ali o principal problema.
“A nível de segurança, o bairro é tranquilo, não se passa nada”, desdramatiza, sabendo, porém, que há medo de frequentar a Quinta do Loureiro.
Sem grande esperança, nem “o condão” de uma solução, acredita que o bairro, “daqui a 10 anos, estará igual” e remata: “Aqui só os duros é que ficam.”
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