“A minha mãe contava que ele fumava ópio e que era maçom. Eu tinha 15 ou 16 anos quando me disse que ele era poeta. Não se ligava muito a isso”, conta Ana Jorge, recordando o bisavô Camilo Pessanha, que nunca chegou a conhecer, mas que viveu em Macau metade da sua vida e onde acabaria por morrer.
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As memórias já frágeis de Ana Jorge são complementadas com as dos filhos Filomeno e Victor, que ainda ouviram a avó, já falecida, falar de Pessanha. Maria Rosa dos Remédios do Espírito Santo tinha 12 anos quando Camilo Pessanha morreu, a 01 de março de 1926, faz na terça-feira 90 anos.
“Camilo Pessanha sustentou a minha avó dos sete aos 12 anos. (...) Ele não gostava muito do filho, dizia que ele não tinha juízo, estava sempre fora, e por isso a sustentou. Ela ia a casa dele e ele dava-lhe dinheiro. A avó gostava dele”, lembra Victor Jorge, 66 anos, segurando uma fotografia do João Manuel Pessanha, com farda de oficial da marinha mercante, e fazendo referência a uma relação difícil entre pai e filho que ainda hoje é comentada em Macau.
Tudo indica que João Manuel foi fruto de uma relação de Pessanha com uma concubina chinesa. Apesar de ser o seu único filho consensualmente reconhecido, a relação entre os dois terá sido distante. João Manuel nasceu em 1896 e foi batizado como filho de pais incógnitos. Só em 1900 foi perfilhado por Pessanha. No seu testamento, o poeta deixou a maior parte dos bens à nova companheira, Kuoc Ngan Yeng, conhecida como “Águia de Prata”, em detrimento do filho.
‘Avó, quem é esse homem com bengala, cheio de barbas?’
Foi também pela avó que os trinetos de Pessanha souberam que descendiam de alguém que fez nome na literatura, ainda que não fosse essa a faceta a que era mais associado em Macau, onde foi professor, juiz e conservador do registo predial.
“A conversa surgiu quando arrumávamos coisas e vimos umas fotografias antigas. ‘Avó, quem é esse homem com bengala, cheio de barbas?’, ‘É seu trisavô’, disse ela, e começou a contar a história dele. Contou que foi advogado, tinha mulheres chinesas, até aprendeu a escrever chinês. Depois foi juiz”, recorda Victor, estimando que teria uns 20 anos na altura. E escritor? “Sim, ela sabia que tinha sido poeta. Foi também encarregado do Governo e tinha muitas antiguidades”, conta.
Filomeno lembra-se de ter sabido do parentesco mais tarde, teria já mais de 30 anos, quando Maria Rosa terá sido abordada para dar uma entrevista: “A avó falava dele, mas não muito. Dizia que era boa pessoa, escrevia umas coisas, tinha boas relações com muita gente, tanto portugueses, como chineses e macaenses. Mas a avó só nos disse umas coisinhas, não temos muito conhecimento”.
Apesar da surpresa da ligação familiar, ambos sabiam bem quem era Camilo Pessanha, já que “a cabeça inteira dele, com os bigodes”, como recorda Filomeno, passava de mão em mão, impressa na nota de 100 patacas.
Ana Jorge, “quase a fazer 83 anos”, e os filhos são macaenses em todos os aspetos: nos traços faciais que refletem a mistura portuguesa e chinesa, no sotaque, no bilinguismo, nas expressões, na afabilidade. Talvez pela distância, temporal e geográfica, pelo português fluente mas temperado pelo chinês e pelo patuá macaense, estes familiares de quarta geração, sem uma "Clepsidra" na estante, estão afastados da obra do poeta. “Só passei uma vista de olhos pelos poemas, não posso ser muito afirmativo”, comenta Victor.
Filomeno, hoje com 59 anos e membro da Tuna Macaense, diz ter lido alguns versos depois de a avó lhe contar da ligação familiar. Musicar poemas de Pessanha chegou a passar-lhe pela cabeça, mas eram muito longos e cortá-los estava fora de questão. “Faço muitas músicas em português e patuá. Não estudei música, mas sou músico”, comenta, referindo-se à veia artística: “Acho que herdei isso dele”.
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