Para Marco Daniel Duarte, “a relação de Fátima com o Estado Novo exige uma investigação que ainda não está totalmente feita”.
“Aquilo que é o mais fácil para a narrativa que tem sido criada é que Fátima e o Estado Novo são quase a mesma coisa. Há, inclusivamente, uma narrativa mitográfica que diz que Fátima é construída pelo Estado Novo. Ora, tudo isto exige que haja, de facto, uma investigação séria”, defende.
Desde logo porque “Fátima nasce no contexto pré-Estado Novo, num contexto de I República, (…) de um Portugal que é claramente anticlerical, que tem muitas dificuldades em assumir uma mensagem religiosa”, afirma o historiador, lembrando que os patriarcas do republicanismo diziam que “em poucas gerações o catolicismo seria erradicado do país”.
Admitindo que o catolicismo encontra um espaço de maior conforto para a expressão da fé durante o Estado Novo, diz não ser de admirar, por isso, que “a historiografia tenda a dizer que Fátima cresce de uma forma muito considerável no período” da ditadura de Salazar.
No entanto, adverte, há que “dizer de uma forma muito clara que Fátima não é igual a salazarismo. Aliás, o próprio presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, pouquíssimas vezes veio a Fátima. Veio nos anos 50, numa visita que nem sequer era oficial, e veio depois em 1967, aquando do cinquentenário das aparições com o Papa Paulo VI”.
“O poder político não frequenta Fátima de forma assinalável. Há momentos muitíssimo importantes em Fátima relacionados com episódios soleníssimos e não é o chefe de Estado nem é o chefe do Governo que vem a Fátima”, lembra Marco Daniel Duarte, apontando o exemplo de 1946, quando “a imagem de Nossa Senhora de Fátima é coroada como Rainha do Mundo e Rainha da Paz e vem um legado pontifício do Papa Pio XII” ao Santuário.
Nesse dia, “nem Salazar nem o chefe de Estado estão em Fátima. Aquilo que vemos acontecer é, até no período pós-25 de Abril, a presença do Estado e a presença de ministros, porventura até mais detetável do que propriamente no Estado Novo”, acrescenta.
E apesar da trilogia “Fátima, Futebol e Fado” que se tornou popular para caracterizar o Portugal das décadas anteriores à revolução de 1974, Fátima não deixava de causar alguma incomodidade no poder instalado.
A guerra nas antigas colónias de África e o palco que Fátima constituía para alguma crítica, causava desconforto.
“Os anos 60 são muitíssimo ricos na expressão que Fátima também tem de contrariar aquilo que é a decisão política ao mais alto nível, nomeadamente em relação à questão do Ultramar (…) e da guerra”, sublinha Marco Daniel, lembrando que se veem “os fiéis a virem a Fátima pedir que termine a guerra, que os soldados não sejam mobilizados para a guerra”.
“Vemos isto a partir de várias vozes: em primeiro lugar, a partir dos próprios soldados, os militares que (…) vêm a Fátima pedir a proteção da Virgem para a sua missão no Ultramar, vêm também doentes e soldados mutilados agradecer o facto de terem sobrevivido à guerra e isto são, obviamente, manifestações muito claras de que Fátima é palco de uma reivindicação, de uma contestação em relação a esta guerra que levava à morte milhares de inocentes”, frisa o diretor do Departamento de Estudos do Santuário.
Para o responsável, “estas vozes que se fazem ouvir em Fátima não são apenas as vozes dos soldados, são as vozes dos pregadores, dos padres que aqui têm discursos pró-pacifistas, a voz das madrinhas de guerra, dos filhos de soldados, das noivas dos soldados, que aqui deixam as suas mensagens (…) que ainda hoje são fontes inestimáveis para perceber um período da história portuguesa”.
“Nós vemos aqui, de facto, essa contestação silenciosa de Fátima ser um abrigo para estas angústias da humanidade nesta época”, diz o historiador.
Havia a perceção de “que o regime sentiria, por um lado, algum desconforto, no sentido em que há aqui um palco onde vemos soldados a rastejar na passadeira dos penitentes com as suas fardas, portanto, uma paisagem humana muito difícil de perceber, que não é uma paisagem humana que apareça nos jornais de forma muito clara, mas, ao mesmo tempo, olhava para Fátima como lugar [onde] ‘eles vão fazer as suas orações’, quase que não é nada político”.
Mas, argumenta, “há aqui uma dimensão que não é apenas religiosa, é fundamentalmente também política”.
E sendo política, como era o controlo feito pela polícia do regime em Fátima?
“Não temos evidência desse tipo de controlo”, o que pode ser explicado pela sensação de que, “para a PIDE, não pareceria óbvio que em Fátima acontecesse algo que contrariasse a voz do regime”, acrescenta.
Período da revolução em Fátima ainda é lugar de inquietações
O diretor do Departamento de Estudos do Santuário de Fátima considera que o período da revolução de 1974 na Cova da Iria “continua ainda a ser um ‘lugar’ de muitas inquietações”.
“O 25 de Abril de 1974 é um tempo que está ainda por estudar e que, a partir das fontes ligadas à Igreja, continua ainda a ser um lugar de muitas inquietações”, diz em entrevista à agência Lusa Marco Daniel Duarte, acrescentando: “sabemos que a Conferência Episcopal estava reunida em Fátima. E não sabemos exatamente o que se passou naquela reunião. Esses arquivos têm de ser explorados nesse sentido”.
O que se sabe é que em maio seguinte houve a tradicional peregrinação de dia 13, desta vez presidida pelo cardeal António Ribeiro, patriarca de Lisboa, e verifica-se que “não tem uma diminuição de fiéis, a esplanada está cheia”.
Na homilia, António Ribeiro “vai aproveitar o grande tema que a Igreja estava a trabalhar do ponto de vista universal, que é o Ano Santo, que tinha palavras-chave como Redenção, Reparação, Reconstrução”, recorda Marco Daniel, para explicar que o patriarca “vai aproveitar essas palavras e usá-las no contexto político que se está a viver”.
“Podemos quase dizer que é a primeira grande intervenção dirigida à massa dos fiéis para mostrar que a Igreja estava disponível para, a partir de uma renovação dos espíritos, construir e ajudar a construir um mundo novo. Expressões como mundo novo, liberdade, consciência, reconstrução, mas também responsabilidade, aparecem nessa homilia”, sublinha o historiador.
Sobre o ambiente vivido por esses tempos em Fátima, Marco Daniel Duarte afirma que, “ao olhar para trás, percebe-se que há uma serenidade muito grande do ponto de vista do santuário e dos seus decisores, ao mesmo tempo que essa serenidade não deixa de estar eivada de preocupação”.
“Sendo Fátima um ícone religioso por excelência, estando nessa tradição de leitura conotada com o Estado Novo, sentir-se-ia em Fátima essa necessidade de estar atento às movimentações do novo regime que se estava a tentar encontrar”, explica.
Após o 25 de abri 1974 e até ao ano de 1975, “são meses com preocupações relativamente à forma como a Igreja seria tratada do ponto de vista do novo regime democrático e, dentro da Igreja, obviamente o fenómeno Fátima como um fenómeno importantíssimo”, lembra.
Ao mesmo tempo, pelo que “está escrito - porque, na verdade, muitas das decisões não ficaram escritas e não as há documentadas nos arquivos – [o que se assiste] é, de facto, [a] uma grande serenidade, uma presença muito clara, sem temor, ainda que com receio de que algo pudesse acontecer, mas sem temor para dialogar e enfrentar a adversidade”.
Apesar disso, foi possível vislumbrar que a Voz da Fátima – órgão oficial do Santuário, através da palavra do seu reitor monsenhor Luciano Guerra, “vai ter muitos pontos de ligação às preocupações humanitárias que decorrem do 25 de Abril, nomeadamente (…) sobre a descolonização e sobre a forma como os irmãos - ele chama-lhes assim - que vêm das colónias devem ser recebidos por aqueles que estão na chamada antiga metrópole, como que a dar uma nota muito clara sobre o comportamento” que os católicos dessa época devem ter.
“E ele não tinha de falar senão e apenas sobre Fátima, mas ele toma esse assunto, que é um assunto nacional, um assunto muito difícil, a questão dos retornados, e a partir da sua palavra encoraja a que essas pessoas sejam enquadradas de forma feliz na sociedade que se está a reerguer”, aponta Marco Daniel, que sublinha a consolidação que Fátima assumiu no panorama nacional e internacional após o 25 de Abril.
“Fátima, de facto, não é subserviente do Estado Novo, nem está colada ao Estado Novo. E a prova máxima disso é que o seu desenvolvimento não é apenas durante o Estado Novo. Esse desenvolvimento não está relacionado com o Estado Novo, mas está relacionado com a política religiosa do mundo contemporâneo, sobretudo a partir do pontificado de Pio XII. É uma questão religiosa já de escala universal”, afirma o diretor do Departamento de Estudos do Santuário.
É a partir do 25 de Abril, “se quisermos marcar aqui uma barreira política, que Fátima se desenvolve ainda mais, no pontificado de João Paulo II e em todos os pontificados seguintes. Portanto, de forma muito evidente, Fátima tem dentro de si um motor que não é um motor que dependa da política nacional”.
E, no horizonte, vislumbra uma Fátima viva dentro de outros 50 anos, pois “o fenómeno Fátima é um fenómeno que interessa à Humanidade, porquanto tem na sua génese uma temática que nunca estará vencida, que é a temática da Paz”.
O pós-revolução na linguagem própria da Voz da Fátima
O leitor mais desprevenido que, em 1974, tentasse obter informações sobre o 25 de Abril e as suas repercussões na Igreja, em particular no Santuário de Fátima, através do órgão oficial da instituição, encontrava algumas dificuldades.
Nas páginas da Voz da Fátima, mensário oficial do Santuário, a linguagem usada nos meses pós-revolução é difusa sobre a ação militar que levou à queda do regime, com poucas explicações e mensagens pouco explícitas.
O diretor do Departamento de Estudos do Santuário, Marco Daniel Duarte, em entrevista à agência Lusa assume que “essa é a linguagem típica da imprensa católica da época”.
“Há quase como que um desviar do próprio nomear do acontecimento do 25 de Abril. É, de facto, sempre dito ‘os acontecimentos recentes’, ‘os acontecimentos que assolaram o país’, ‘os acontecimentos que estamos a viver’. E isso diz respeito a uma posição defensiva da Igreja perante os cenários que estavam a ser desenhados”, afirma.
Com efeito, no número de 13 de maio de 1974, na página 2 é publicada apenas uma pequena breve sobre a reunião da Conferência Episcopal que decorria em Fátima no dia 25 de abril, mas sem qualquer referência à revolução.
No número seguinte, de junho, é publicada a homilia que o cardeal António Ribeiro proferira na peregrinação de maio.
“Somos Igreja. Por isso, em nós deve transparecer o rosto sereno e firme, alegre e confiante, humilde e penitente, de quem caminha na história dos homens e com eles partilha, bem de dentro, as esperanças e as angústias, as alegrias e as penas, as certezas e as interrogações da hora atual”, afirmou o patriarca de Lisboa perante milhares de peregrinos.
“Renovar os homens e as instituições, sem atropelo ao direito e na observância da fraternidade humana e cristã é tarefa a que todos somos convocados no momento atual. Uma sociedade nova precisa de homens novos. E as instituições, ainda que alteradas na forma, só deixarão de ser velhas quando forem servidas e constituídas por homens renovados. E ninguém pense já ter atingido a meta da renovação”, avisava então o sucessor de Manuel Cerejeira à frente do Patriarcado de Lisboa.
De seguida, e sempre sem se referir explicitamente ao 25 de Abril, António Ribeiro preconizava que “a nova ordem social terá de assentar na verdade e na justiça, na liberdade e no amor e na paz. São estes, por certo, os valores que presentemente se anunciam e, diante de tal anúncio, nenhum cristão deixará de se alegrar. Com todos os homens de boa vontade, os cristãos são pregoeiros e artífices de um mundo novo, sempre voltado para o futuro, onde a mentira seja abolida, onde a injustiça não tenha foros de cidadania, onde a reta liberdade de todos possa ser respeitada e vivida, onde o ódio desapareça e a guerra dê lugar à paz e à concórdia fraterna”.
Em agosto desse ano, a Voz da Fátima começou a publicar – num processo que durou meses – a Carta Pastoral do episcopado “sobre o contributo dos cristãos para a vida social e política”.
Quem fosse lendo apenas este mensário, ficaria na dúvida sobre as razões da publicação do documento que pretendia “ser uma ajuda à leitura cristã dos últimos acontecimentos da vida portuguesa”.
Em setembro, um tema polémico era tratado na última página da Voz da Fátima, que dava conta de “uma grande campanha para a liberalização do divórcio em Portugal”.
“Não é de agora. Vinda da Primeira República, um tanto abafada durante o regime de Salazar, começou a tomar vulto por volta de 1965, com a fundação do Movimento Pró-Divórcio. Mas foi a partir do 25 de Abril, favorecida pelo atual clima reivindicativo e libertário, que a campanha assumiu proporções que não deixarão de impressionar a opinião pública e as próprias autoridades civis e religiosas”, lia-se no jornal do Santuário.
O título era um alerta: “Para os católicos sinceros o divórcio não traz solução”.
No número de outubro, eram reproduzidas as palavras do Papa Paulo VI durante a cerimónia de entrega de credenciais do embaixador de Portugal junto da Santa Sé, Calvet de Magalhães. O pontífice abordava, entre outras, a questão do Ultramar.
“Seguimos, com vivo interesse, as iniciativas referentes aos territórios do Ultramar”, desejando que se “possam garantir em tais regiões seguras condições de justiça, de paz e de progresso”, desejava o Papa.
Um mês depois, era dada nota da necessidade de se evitar “o aproveitamento abusivo de Fátima como arma anticomunista, aproveitamento que poderia desvirtuar a Mensagem da Fátima (segundo a qual a conversão da Rússia está dependente da nossa própria conversão)”, ao mesmo tempo que se considerava ser uma “traição a Fátima calar-se o pedido de Nossa Senhora em favor da conversão da Rússia, como se o mesmo não fosse lugar central da Mensagem, e as intenções sociais dos regimes políticos pudessem fazer esquecer o seu ateísmo militante”.
E o ano de 1974 terminou na Voz da Fátima com a manchete “Será Fátima anticomunista?”.
“No clima de liberdade política introduzida pelo 25 de Abril, tem vindo à tona, com bastante frequência, o problema das relações de Fátima com o comunismo. (Diga-se, aliás, entre parêntese, que Fátima tem sido, nestes últimos meses, alvo predileto de uma série de pessoas e instituições que chegam a dar-nos a impressão de que, já desde muito antes do 25 de Abril, tinham as suas armas aperradas e a mão no gatilho, à espera duma primeira ocasião para dispararem contra Fátima - e não só pelas suas relações com o comunismo! Sem paixão, convém que pensemos no assunto, mas a longo prazo)”, escrevia o reitor do Santuário, monsenhor Luciano Guerra.
*Por João Luís Gomes da agência Lusa
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