Ao longo de 18 horas, a 16 de junho, o “Molly Bloomsday" recriou os 18 capítulos da obra em diferentes lugares da região de Donegal, desde o forte histórico da Idade do Ferro An Grianán of Aileach, à praia de Lisfannon e ao cemitério da cidade, também conhecida por Derry.
O evento aproveitou o facto de Derry ser tradicionalmente associada ao movimento feminista devido às mulheres que trabalhavam na produção de camisas desde o século XIX para se centrar na personagem Molly Bloom, que domina o último capítulo do livro.
O “Bloomsday” é a celebração anual do dia 16 de junho de 1904, em que decorre todo o enredo do livro situado em Dublin, capital da República da Irlanda.
O peso histórico de Derry e o conflito entre republicanos católicos e unionistas protestantes na Irlanda do Norte estará presente no evento.
Foi em Derry que aconteceu o chamado “Domingo Sangrento” (‘Bloody Sunday’) de 30 de janeiro de 1972, quando 14 ativistas católicos, alguns menores, foram mortos por militares britânicos.
James Joyce estava a escrever "Ulisses" em 1921, quando foi legislada a partição da Irlanda, e o co-produtor do projeto, Seán Doran, acredita que o escritor acompanhou os debates políticos sobre a criação da Irlanda do Norte.
No último episódio, indicou, é possível perceber a simpatia pró-Sinn Féin, o principal partido a favor da união política da Irlanda, de Leopold Bloom (outra personagem da obra) e o caráter pró-britânico de Molly Bloom.
Por isso, nesse dia teve lugar uma parada com oito bandas militares inspirada pela afeição de Molly, que teve dois amantes militares, por este tipo de música.
"Joyce era muito analítico e atento a todos os pormenores, não creio que seja uma coincidência. Mas eu nunca tinha percebido antes de fazer este projeto e a maioria das pessoas não dá muita importância", afirmou Seán Doran à agência Lusa.
O "Molly Bloomsday" é a última etapa do projeto "Odisseia Europeia Ulisses", que celebrou a reconhecida obra do escritor irlandês James Joyce em 18 cidades europeias entre 2022 e 2024.
O objetivo da produtora Arts Over Borders foi marcar o centenário da publicação de "Ulisses" em 1922, promovendo a sua "dimensão europeia".
"Não é muito apregoado que ele escreveu-o a partir da Europa", enfatizou Doran, referindo-se ao facto de Joyce ter vivido em Zurique, Trieste e Paris enquanto escreveu aquele romance.
O projeto foi dividido em 18 partes, o número de capítulos de "Ulisses", cada uma numa cidade europeia: Atenas, Budapeste, Trieste, Marselha, Vilnius, Paris, Berlim, Lugo, Copenhaga, Istambul, Cluj, Zurique, Leeuwarden, Eleusis, Oulu, Lisboa, Dublin e Londonderry.
Em cada local, parceiros locais recriaram um capítulo enquanto exploraram temas europeus, como a cidadania e a democracia, migrações, a identidade sexual, o ambiente ou a saúde mental.
A peça "Blooming", dirigida por Marco Martins, que esteve no teatro São Luiz, em Lisboa, baseou-se no 16.º capítulo da obra de James Joyce.
Doran vincou que este projeto multidisciplinar transeuropeu que se prolongou por dois anos só foi possível graças ao financiamento da União Europeia (UE).
O projeto recebeu 1,72 milhões de euros, cerca de 60% do total, do programa Creative Europe da Comissão Europeia, que gere um orçamento de 2,44 mil milhões de euros para o período de 2021-2027.
"O que fazemos é muito complexo e difícil de gerir, mas tivemos um envolvimento intelectual muito mais natural e fluido, muito mais natural do que o que temos normalmente na Irlanda e no Reino Unido", referiu Doran.
A última etapa do projeto acabou por crescer e resultar na criação do YES Festival, um evento internacional que envolveu 16 países europeus e que englobou debates, teatro, dança, artes plásticas, cinema, fotografia, circo e música ao longo de quatro dias em Londonderry.
Tanto Doran como o colaborador Liam Brown são originários de Derry, o que os levou a escolher esta cidade para terminar o percurso "devido a uma coincidência feliz".
"No último capítulo de Ulisses aparece a palavra "sim" (yes) 92 vezes", incluindo no início e no fim, salientou Doran, frisando que na cidade "as pessoas dizem 'sim' uns aos outros em vez de 'olá', o que não acontece em mais lado nenhum da Irlanda".
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