Introdução
O táxi espera-me em frente do edifício. Abro a porta, cumprimento o motorista, fecho a porta, partimos. Será ele afegão, iraquiano ou paquistanês? Não saberia dizer. Há muitos estrangeiros a trabalhar como taxistas em Nova Iorque. Não conversamos.
O silêncio que me atinge como se fosse um grito vem da Terceira Avenida deserta, sem carros, sem gente, sem o habitual som das sirenes e buzinas, sem lojas nem restaurantes abertos. Quem disser que o som do silêncio não existe, não sabe o que está a dizer. Na madrugada de 12 de Setembro de 2001, eu ouvi-o.
Teria sido mais sensato ter ficado na redação. Eu só tinha 30 minutos, mas precisava de ir para casa. Ao menos para sentir a água do chuveiro a tocar-me no corpo, deitar-me no colchão por alguns minutos, escolher uma roupa como se fosse um dia qualquer. Precisava desta realidade banal.
Estávamos quase a chegar à esquina da rua 96. Já conseguia ver a mesquita. O condomínio de apartamentos onde eu morava ficava em frente à grande mesquita de Manhattan.
Despeço-me do taxista. Sinto um forte cheiro a gás logo na entrada do hall gigantesco, mobiliado daquela forma impessoal dos altos edifícios residenciais da cidade. Avanço para os elevadores. Carrego no botão do vigésimo andar. O cheiro fica mais forte à medida que subo, está impregnado nos corredores e invade o apartamento.
Telefono para a portaria. Preciso de uma explicação. Foi um dia muito longo. Posso estar a ter alucinações. “Não há nenhuma fuga”, garante a voz do outro lado. “É o fumo que vem do World Trade Center. É que o vento mudou de direção.”
***
Em 2001, eu chefiava a redação da TV Globo, em Nova Iorque. Na manhã de 11 de setembro, logo depois de o segundo avião chocar contra a Torre Sul do World Trade Center, eu entrei no ar em direto, por telefone e, durante aproximadamente duas horas, narrei os acontecimentos para o público brasileiro, incluindo o ataque ao Pentágono e a queda da primeira torre. Durante 18 anos, não tive coragem de ouvir nem ver a transmissão. A proximidade do vigésimo aniversário dos atentados e uma viagem ao Paquistão acabaram por me mostrar a história que eu precisava de contar.
Assim nasceu este livro sobre as vidas de seis pessoas do Afeganistão, do Iraque e do Paquistão, países que foram arrasados pelas consequências dos atentados às Torres Gémeas. E também sobre a vida de um jordano de origem palestina. Como me resumiu um deles: “Os americanos tiveram um 11 de Setembro, nós vivemos o nosso 11 de Setembro até hoje.”
Ao longo de 2 anos e meio, entrevistei, acompanhei e reconstituí as vidas de Ahmer, um rapaz que foi treinado para ser um menino-bomba; do jornalista Baker Atyani, que Osama Bin Laden escolheu para anunciar que estava prestes a realizar um grande atentado; do general Ehsan Ul-Haq, ex-espião-chefe do equivalente à CIA paquistanesa, da poeta iraquiana Faleeha Hassan, que acabou por ser obrigada a viver no país invasor; da jovem iraquiana Gena, que fugiu para a Síria sem imaginar que iria mergulhar noutro conflito sangrento; de Rafi, um afegão que atravessou oito países para escapar dos Talibãs, e de Gawhar, uma afegã que fugiu da ocupação militar americana rumo à Europa.
Com exceção de Ahmer, o menino treinado pelos Talibãs paquistaneses, todos eles são pessoas de classe média ou média alta. Pessoas que tinham, poderiam ter tido ou têm vidas semelhantes às das vítimas dos ataques de 2001.
Naquela manhã de setembro, 19 terroristas da Al-Qaeda, organização extremista islâmica liderada por Osama Bin Laden, sequestraram quatro aviões comerciais com passageiros, lançaram dois contra as Torres Gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque, e um contra o Pentágono, sede do poder militar da maior potência do mundo, em Washington. O quarto avião caiu na Pensilvânia. Duas mil novecentas e setenta e sete pessoas morreram. Este é até hoje o ataque terrorista mais mediático da história, acompanhado em direto por dois mil milhões de pessoas em todo o mundo.
Em 1993, combatentes ligados à Al-Qaeda tinham feito explodir uma bomba na garagem do World Trade Center. Em 1996, Osama Bin Laden declarou Guerra Santa contra os Estados Unidos exigindo a retirada das tropas americanas da Arábia Saudita onde fica Meca, a cidade mais sagrada para os muçulmanos. Entre 1996 e 2000, a Al-Qaeda foi responsável por atentados contra alvos militares dos Estados Unidos na Arábia Saudita, contra as embaixadas americanas no Quénia e na Tanzânia e contra o destroyer USS Cole, no Iémen.
Em resposta aos ataques de 11 de setembro, os Estados Unidos do presidente George W. Bush proclamaram a chamada Guerra ao Terror e formaram uma coligação de quarenta países com o objetivo de destruir a Al-Qaeda e capturar Osama Bin Laden. O terrorista vivia no Afeganistão, um dos países mais pobres do mundo, que foi governado pelos talibãs de 1996 a 2001.
No dia 7 de outubro de 2001, os caças americanos e britânicos começaram a bombardear o Afeganistão. O poderio militar dos Estados Unidos e dos seus aliados tirou os talibãs do poder, mas não conseguiu capturar Osama Bin Laden até 2011. A guerra do Afeganistão dura há 20 anos, é o conflito militar mais longo da história americana.
Em 20 de março de 2003, os Estados Unidos iniciaram outra guerra, desta vez contra o Iraque do ditador Saddam Hussein, alegando que o país escondia armas químicas, que nunca foram encontradas. O Iraque não tinha qualquer ligação com os atentados de 11 de setembro.
Com Saddam derrotado e sob a ocupação militar estrangeira, a violência sectária entre xiitas e sunitas espalhou-se pelo país. Como resposta direta à ocupação militar americana, surgiu o Estado Islâmico, um grupo radical ainda mais extremista e violento do que a Al-Qaeda, que iria espalhar o terror no país e na vizinha Síria. As tropas americanas só deixariam o Iraque em 2011. Mas o caos e a violência não cessaram.
Osama Bin Laden seria morto, no Paquistão, 10 anos depois dos ataques a Nova Iorque e Washington, numa das operações mais secretas das forças especiais americanas.
No Afeganistão, em 20 anos de guerra, terão morrido mais de 157 mil pessoas; no Iraque, de 2003 até hoje, 10 anos depois de as tropas americanas se retirarem do país, morreram entre 308 e 600 mil; e no Paquistão, o aliado dos Estados Unidos na Guerra ao Terror, 70 mil.
As violações de direitos humanos por militares americanos, como os abusos e tortura a prisioneiros, muitas vezes inocentes, na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, e na base de Guantánamo, geraram ainda mais ressentimento nas populações destes países.
A Guerra ao Terror provocou mais radicalização religiosa, conflitos internos, forçou milhões de pessoas a abandonarem as suas casas e fugirem para outros países e aumentou ainda mais o preconceito em relação a muçulmanos e árabes em todo o mundo.
Dizem que o mundo nunca mais foi o mesmo depois de 11 de setembro de 2001. Para Rafi, Gawhar, Faleeha, Gena, Ahmer, Ehsan e Baker, o mundo mudou para sempre.
Estas são as minhas memórias das memórias deles.
Instantâneos 1977-2001
RAFI — CAZAQUISTÃO
Era como se estivesse num caixão vertical, com as costas prensadas numa chapa quente, insuportavelmente quente. Sentia as costas a arder. O compartimento era tão estreito que não podia mexer-se – uma mini-casa das máquinas do comboio. Ele não conseguia respirar. O nariz estava encostado à porta trancada, todo o seu corpo parecia colado à porta. Rafi tinha sido o último a esconder-se. A polícia estava prestes a entrar na carruagem e eles atiraram-no e trancaram-no ali. A cada 5 minutos, parecia que a vida lhe ia escapando. Era verão, devia estar quente lá fora, mas ali dentro era o inferno. Começou a achar que estava a perder os sentidos, a respiração suspensa, o coração a bater mais rápido, a explodir.
Disseram-lhe para não se mexer, não falar, tinha de ficar quieto senão a polícia descobriria e mandá-lo-ia de volta para o Afeganistão. Precisava de respirar. Juntou as mãos num esforço hercúleo e tentou empurrar a porta com a força do desespero. Por uma fresta mínima viu um polícia passar e pensou no que era realmente importante. Tentou acalmar-se. Esperou que o polícia passasse, mas poucos minutos depois não resistiu. Começou a bater na porta, pediu socorro, gritou que não tinha mais oxigénio, que ia morrer. Ninguém ouviu. Aos 20 anos, Rafi não tinha dúvida de que iria morrer na fronteira do Cazaquistão com a Rússia, não na Europa, não num país seguro, nem junto dos pais em Cabul.
GAWHAR — AFEGANISTÃO
Corria à velocidade do medo, medo de que o homem as alcançasse. A irmã corria com ela sem olhar para trás. Gawhar só pára uns milésimos de segundo para largar os chinelos no caminho e correr ainda mais depressa. Justamente no dia em que usava o vestido cor-de-rosa de bolinhas tão bonito que a mãe costurara com a máquina que tinha em casa. Mas não há tempo para pensar no vestido nem nos chinelos, muito menos na água. Haviam saído de casa com as garrafas vazias para encher na única torneira de água potável do bairro. Distraídas, nem repararam que os homens estavam a sair da mesquita depois da oração. Foi quando um dos Talibãs começou a correr na sua direção com a pergunta fatal: Porque é que não estás a usar o véu?
Correm cada vez mais depressa. Chegam finalmente a casa, trancam a porta. O coração aos pulos. Dois corações aos pulos. Durante 10 minutos, ficam assim, atrás da porta, à espera que alguém bata e pergunte por elas. Ninguém vem. Foi neste dia que entendeu que algo havia mudado e que não podia voltar a sair de casa sem usar o véu. Mas por que razão uma menina de 7 anos precisava mesmo de cobrir a cabeça e de se esconder?
Como Gawhar gostava daquele vestido cor-de-rosa.
FALEEHA — FRONTEIRA IRÃO-IRAQUE
Faleeha sai sozinha de casa em Najaf e entra no camião repleto de soldados e de mulheres, a maioria, viúvas, vestidas de preto, à procura dos filhos. Todas choram com comoção. Parece um coro. Aos 20 anos, é a primeira vez que Faleeha vai à linha da frente, ao campo de batalha. A guerra entre o Iraque e o vizinho Irão já dura há 8 anos. O pai não manda notícias há 3 meses. A mãe está em desespero. Precisa de encontrá-lo.
O coração aperta, não acredita. Avista o pai. A reação dele é a pior possível. Fica zangado, grita que ela não deveria ter vindo. Mas o comandante emociona-se ao ver a filha que procura o pai e deixa os dois voltarem juntos para casa. Na estrada, veem uma bomba atingir um camião militar e jovens explodirem pelos ares. Pedaços de corpos voam em todas as direções. É o prenúncio de uma vida que será contada de guerra em guerra.
GENA — IRAQUE
Acorda em choque. Gena tem apenas 5 anos, mas todo o seu corpo treme. A sirene é ensurdecedora, os bombardeamentos vão começar. Dispara juntamente com as três irmãs, o irmão e a mãe para o corredor sem janelas nem espelhos.
Sentam-se no sofá, agarram-se todos colados de tão juntos. As crianças choram. A mãe chora. A mãe reza. O pai não está em casa. A mãe não sabe o que fazer. Liga para o avô de Gena. É uma da manhã, é madrugada em Bagdade. O pai de Gena nunca está em casa.
AHMER — PAQUISTÃO
Ahmer olha para a bola, hipnotizado. Concentra-se e corre atrás dela como se não houvesse ninguém à sua frente. Finta o outro menino e marca golo. Corre para festejar. Não há plateia. Os pais, muito pobres, não têm tempo para ele nem para os irmãos. Nunca perguntam para onde vai. Tem 5 anos e faz o que quer na minúscula aldeia do Vale do Swat, no noroeste do Paquistão, berço da civilização budista Gandara, com paisagens que a rainha de Inglaterra comparou aos Alpes suíços. A 500 quilómetros do vale, numa corrida contra o relógio, o motorista da neuropsicóloga Feriha Peracha conduz o mais rápido que pode pelas ruas movimentadas de Lahore para ela não chegar atrasada ao consultório de classe alta da cidade mais liberal do Paquistão. Ahmer e Feriha transitam em dois mundos opostos, nem desconfiam que um dia vão mudar a vida um do outro.
EHSAN UL-HAQ — IRÃO
Como um íman, Ehsan é atraído em direção à arquibancada. É possível vê-lo chegar à distância. O homem entra na bancada vazia, senta-se sozinho isolado das outras 6999 pessoas que enchem o estádio. Os cavalos estão a saltar, mas o que chama a atenção do jovem oficial paquistanês não é o espetáculo equestre. Estranha que nem os ministros, nem a família, nem a rainha fiquem ao lado do xá Reza Pahlavi. Ele está sozinho sentado numa cadeira, num sítio onde cabem 1000 pessoas, calcula Ehsan Ul-Haq. Há algo muito estranho no reino do xá. Nunca esquecerá aquele dia de 1977, a imagem do homem mais poderoso do Irão, desconectado do seu povo, a observar cavalos a saltarem. O poder pode ser traiçoeiro.
BAKER ATYANI — KUWAIT
Baker agarra a pequena câmara que tem em casa e sai. É um apaixonado por fotografia. Tenta ser o mais discreto possível, esconde-se ao fotografar as tropas de Saddam Hussein a marchar pelas ruas da capital do Kuwait. Fotografa casas a arder e tudo o que vê pela frente.
É o verão de 1990, o jordano Baker Atyani tem 22 anos, vive com a família na cidade do Kuwait e testemunha a ocupação iraquiana que vai provocar a primeira Guerra do Golfo. Não, não faz a mínima ideia de que um dia vai trabalhar como jornalista e entrevistar o homem mais procurado do mundo.
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