Primeira Parte
I
VINCENT NO OCEANO
Dezembro de 2018
1
Começar pelo fim: cair da amurada do navio em plena escuridão feroz da tempestade, a respiração cortada pelo choque da queda, a minha câmara de vídeo a voar pela chuva...
2
Arrebata-me. Palavras escrevinhadas numa janela quando eu tinha treze anos. Recuei e deixei o marcador cair-me da mão, e ainda recordo a exuberância desse instante, a sensação no peito como luz cintilando em vidro esmagado...
3
Terei vindo à superfície? O frio é aniquilador, o frio é tudo o que existe...
4
Uma estranha recordação: parada à beira-mar em Caiette, quando tinha treze anos, a câmara de vídeo novinha em folha, fria e estranha nas minhas mãos, filmando as ondas em intervalos de cinco minutos, e enquanto filmo ouço a minha própria voz sussurrar: «Quero ir para casa, quero ir para casa, quero ir para casa.» Mas onde é a minha casa senão aí?
5
Onde estou? Nem dentro nem fora do oceano, já não sinto o frio, aliás, já não sinto nada, estou ciente da existência de uma fronteira, mas não sei de que lado estou e pelos vistos consigo deslocar-me entre recordações como se passasse de uma divisão à seguinte...
6
«Bem-vinda a bordo», disse o terceiro-imediato da primeira vez que subi a bordo do Neptune Cumberland. Assim que olhei para ele, percebi algo e pensei: «Tu...»
7
Está a acabar-se-me o tempo...
8
Quero ver o meu irmão. Estou a ouvi-lo falar comigo, e as minhas recordações dele provocam-me alguma agitação. Concentro-me muito e de repente estou parada numa rua estreita, na escuridão, à chuva, numa cidade estrangeira. Um homem está sentado meio curvado à entrada de uma porta, mesmo à minha frente, e não vejo o meu irmão há uma década, mas sei que é ele. O Paul ergue o olhar, e ainda tenho tempo para reparar que está com péssimo aspeto, magro e de rastos, e ele vê-me, mas depois a rua tremeluz e desaparece...
II
VOU SEMPRE TER CONTIGO
1994 e 1999
1
No final de 1999, Paul estava a estudar Economia na Universidade de Toronto, algo que deveria ter sentido como uma espécie de triunfo, mas a verdade era que estava tudo errado. Quando era mais novo, convencera-se de que se licenciaria em Composição Musical, mas vendera o seu teclado durante uma fase complicada há uns anos, e a mãe recusava-se a entreter a ideia de um curso pouco prático, e, depois de uma série de desintoxicações dispendiosas, não a podia censurar por isso, pelo que se matriculara num curso de Economia a pretexto de que isso representava um passo em frente prático e impressionantemente adulto — «Olhem para mim, a aprender sobre mercados e sobre as movimentações do dinheiro!» —, mas a única falha nesse plano brilhante era o facto de considerar a temática fatalmente desinteressante. O século estava a chegar ao fim, e ele tinha algumas queixas.
Esperara, no mínimo, poder introduzir-se num contexto social decente, mas o problema de desistir do mundo é que este continua sem nós, e, entre o tempo despendido com uma substância que nos absorve por completo, o tempo despendido a trabalhar em lojas desmoralizantes enquanto tentava não pensar na substância e o tempo despendido em hospitais e clínicas de reabilitação, Paul já estava com 23 anos e parecia mais velho. Nas primeiras semanas de faculdade, foi a festas, mas nunca tivera muito jeito para meter conversa com estranhos, e todos lhe pareciam incrivelmente jovens. Os exames a meio do ano correram-lhe mal, pelo que em finais de outubro passou o tempo inteiro ou na biblioteca — a ler, esforçando-se por se interessar por Economia, tentando contrariar os resultados — ou no quarto, enquanto a cidade em volta ficava cada vez mais fria. O quarto era individual, pois uma das poucas coisas em que ele e a mãe tinham concordado era que seria um desastre se Paul tivesse um colega de quarto e este andasse metido em opioides, por isso estava quase sempre sozinho. O quarto era tão pequeno que se sentia claustrofóbico caso não se sentasse diretamente em frente à janela. As suas interações com outras pessoas eram escassas e superficiais. Havia uma nuvem negra de exames no horizonte próximo, mas estudar era absolutamente escusado. Tentava insistentemente concentrar-se na teoria da probabilidade e nas martingalas em tempo discreto, mas os seus pensamentos desviavam-se para uma composição para piano que sabia que jamais iria terminar, uma coisa em Dó Maior perfeitamente básica, mas com ligeiras flutuações de acordes menores desestabilizadores.
No início de dezembro, deixou a biblioteca ao mesmo tempo que Tim, que tinha duas cadeiras com ele e também preferia a última fila do anfiteatro.
— Vais fazer alguma coisa logo à noite? — perguntou-lhe Tim. Era a primeira vez em muito tempo que alguém lhe perguntava alguma coisa.
— Estava com esperança de encontrar música ao vivo algures. — Paul não pensara naquilo antes de o proferir, mas parecia-lhe a direção certa para essa noite. O rosto de Tim iluminou-se um pouco. A única conversa que tinham tido antes dessa fora também sobre música.
— Gostava de ir ver uma banda chamada Baltica — disse Tim —, mas tenho de estudar para os exames finais. Conheces?
— Os exames finais? Sim, estão prestes a lixar-me a vida.
— Não. Os Baltica. — Tim piscou os olhos, exibindo uma expressão confusa. Paul recordou algo que notara antes, o facto de Tim não parecer compreender humor. Era como falar com um antropólogo de outro planeta. Paul achava que esse facto deveria ter criado uma espécie de abertura para uma possível amizade, mas não conseguia imaginar como começaria tal conversa — «Não pude deixar de reparar que estás tão alienado como eu. Podemos partilhar apontamentos?» —, e, além disso, Tim já estava a afastar-se na direção da noite escura de outono. Paul recolheu edições dos semanários alternativos das caixas de jornais junto ao refeitório e regressou ao quarto, onde pôs a tocar a Quinta Sinfonia de Beethoven para lhe fazer companhia e depois perscrutou o cartaz de espetáculos até encontrar os Baltica, que iriam dar um concerto no final dessa noite numa sala de que nunca ouvira falar, algures na esquina da Queen com a Spadina. Quando fora a última vez que ouvira música ao vivo? Paul espetou o cabelo para cima, depois baixou-o, mudou de ideias e voltou a espetá-lo, experimentou três camisas diferentes e deixou o quarto antes de poder fazer mais alterações, desgostoso com a sua indecisão. A temperatura estava a baixar, mas havia algo de purificante no ar frio, e o exercício era uma recomendação terapêutica que andava a ignorar, pelo que decidiu ir a pé.
A sala ficava numa cave por baixo de uma loja de roupa gótica, ao fundo de um lanço de escadas íngreme. Permaneceu no passeio por uns minutos assim que reparou nisso, receando poder tratar-se de um clube gótico — todos se ririam das suas calças de ganga e camisa polo —, mas o segurança mal pareceu reparar nele, e o público era composto por 50% de vampiros apenas. Os Baltica eram um trio: um tipo com um baixo, outro tipo que manuseava um sem-fim de instrumentos eletrónicos ligados a um teclado e uma rapariga com um violino elétrico. O que estavam a fazer em palco assemelhava-se mais a um rádio avariado do que propriamente a música, uma série de explosões de estática estranhas e de notas desconexas, o tipo de música eletrónica ambiente dispersa que Paul, toda a vida fanático de Beethoven, não compreendia de todo, mas a rapariga era lindíssima, pelo que não se importou. Mesmo que não gostasse da música, podia ao menos entreter-se a olhar para ela. A rapariga aproximou-se do microfone e cantou: «Vou sempre ter contigo.» Mas havia um eco — o tipo do teclado carregara num pedal —, pelo que soou
Vou sempre ter contigo, ter contigo, ter contigo
e era verdadeiramente dissonante, a voz com as notas do teclado e as explosões de estática, mas então a rapariga ergueu o violino, e este revelou ser o elemento em falta. Assim que fez deslizar o arco, a nota funcionou como uma ponte entre ilhas de estática, e Paul percebeu como tudo se ligava, o violino, a estática e o suporte indefinido do baixo; por momentos foi empolgante, mas depois a rapariga baixou o violino, e a música reverteu para os mesmos componentes dissonantes, e Paul deu por si a interrogar-se mais uma vez sobre como era possível alguém ouvir aquilo.
Mais tarde, quando a banda se encontrava a beber no bar, Paul esperou que a violinista não estivesse a conversar e aproximou-se.
— Com licença — disse-lhe —, era só para te dizer que adoro a vossa música.
— Obrigada — replicou a violinista. Sorriu, mas da típica maneira contida das raparigas incrivelmente belas que sabem o que vem a seguir.
— Foi mesmo fantástico — disse Paul ao baixista, com o intuito de baralhar as expectativas e de apanhar a rapariga desprevenida.
— Obrigado, pá. — O baixista esboçou um sorriso que fez Paul suspeitar de que estava pedrado.
— Já agora, sou o Paul.
— Theo — retorquiu o baixista. — Aqueles são o Charlie e a Annika.
Charlie, o teclista, acenou com a cabeça e ergueu a cerveja, e Annika observou Paul por cima do rebordo do copo.
— Posso fazer-vos uma pergunta um pouco estranha? — Paul queria muito voltar a ver Annika. — Sou novo aqui na cidade e não conheço nenhum sítio onde ir dançar.
— Vai à Richmond Street e vira à esquerda — respondeu-lhe Charlie.
— Não é isso, quero dizer, já fui a alguns sítios nessa zona, mas é muito difícil encontrar um lugar onde a música não seja uma treta, e queria saber se me poderiam recomendar algum...?
— Ah. Sim. — Theo bebeu o resto da cerveja de um trago. — Experimenta o System Sound.
— Mas ao fim de semana nem pensar — disse Charlie.
— Sim, meu, não vás lá ao fim de semana. As terças à noite são muito porreiras.
— As terças à noite são do melhor — concordou Charlie. — De onde és?
— Dos subúrbios mais profundos — retorquiu Paul. — Terças à noite no System. Muito obrigado, hei de experimentar. — Então virou-se para Annika e disse: — Quem sabe encontramo-nos por lá. — E depois deu meia-volta muito rapidamente para não ver o desinteresse dela, que sentiu como um vento frio nas costas durante todo o percurso até à porta da rua.
Na terça-feira após os exames — três 15 e um 14 — liberdade condicional académica —, Paul foi ao System Soundbar e dançou sozinho. Não gostou particularmente da música, mas sabia-lhe bem estar no meio de uma multidão. As batidas eram complicadas, e não tinha a certeza de como dançar ao ritmo das mesmas, pelo que se limitou a dar passos à frente e atrás com uma cerveja na mão, tentando não pensar em nada. Não era esse o objetivo das discotecas? Esbater os pensamentos com álcool e música? Esperara encontrar Annika, mas não a via na multidão, nem aos restantes membros dos Baltica. Estava constantemente à procura deles, e eles estavam constantemente ausentes, até que por fim comprou uma pequena embalagem de comprimidos com um tom azul-vivo a uma rapariga com o cabelo cor-de-rosa, porque E não era heroína e portanto não contava, mas havia algo errado com os comprimidos ou algo errado com Paul: com uma dentada, cortou um ao meio e engoliu-o, apenas uma metade. Não sentiu nada, por isso engoliu a outra metade com cerveja, mas depois a sala desatou a rodar, ele começou a transpirar, o coração deu um salto, e por breves instantes convenceu-se de que ia morrer. A rapariga do cabelo cor-de-rosa desaparecera. Paul encontrou um banco encostado a uma parede.
— Então, pá, estás bem? Estás bem? — Alguém estava ajoelhado diante dele. Decorrera uma quantidade de tempo considerável. A multidão desaparecera. As luzes estavam acesas, e essa luminosidade era terrível, essa luminosidade transformara o System numa sala rasca com pequenas poças de um líquido não identificado a cintilarem na pista de dança. Um tipo mais velho com um olhar mortiço e uma série de piercings andava de um lado para o outro com um saco do lixo, a recolher garrafas e copos, e depois da intensidade da música, o silêncio soava como um verdadeiro rugido, um vazio. O homem ajoelhado diante de Paul era da gerência da discoteca, envergando calças de ganga, T-shirt dos Radiohead e um blazer típico da gerência das discotecas.
— Sim, estou bem — respondeu-lhe Paul. — Peço desculpa, acho que bebi de mais.
— Não sei o que tomaste, pá, mas não te caiu nada bem — disse o tipo da gerência. — Estamos a fechar, desaparece daqui. — Paul levantou-se algo cambaleante e saiu, lembrando-se já depois de estar na rua de que deixara o casaco no bengaleiro, mas a porta já fora trancada atrás de si. Sentia-se envenenado. Cinco táxis vazios passaram por ele, até que o sexto parou. O motorista era um abstémio prosélito que lhe deu uma lição de moral sobre alcoolismo durante todo o caminho de regresso ao campus. Paul queria tanto enfiar-se na cama que cerrou os punhos e não abriu a boca até o táxi parar finalmente junto ao passeio, altura em que pagou — nada de gorjetas — e disse ao motorista que se deixasse de moralismos de merda e voltasse para a merda da Índia.
— Ouça, quero deixar bem claro que já não sou essa pessoa — disse Paul a um dos orientadores de uma clínica de reabilitação em Utah, vinte anos depois. — Estou apenas a tentar ser sincero sobre quem era nessa altura.
— Sou do Bangladesh, seu palerma racista — respondeu-lhe o motorista do táxi, deixando Paul no passeio, onde este se ajoelhou cuidadosamente e vomitou. De seguida, cambaleou até ao edifício da sua residência, estupefacto com a dimensão do desastre. Enfrentando grandes adversidades, conseguira entrar para uma excelente universidade e agora, em dezembro do seu primeiro ano, já estava acabado. Já estava a falhar, no primeiro semestre. «Tens de te preparar para a desilusão», dissera-lhe um terapeuta em tempos, mas não conseguia preparar-se para nada, fora sempre esse o seu problema.
Duas semanas mais tarde, após o fiasco das férias de Natal — a terapeuta da mãe aconselhara-a a afastar-se do filho, a arranjar tempo para ela e a dar a Paul a oportunidade de se comportar como um adulto, etc., pelo que fora passar o Natal com a irmã a Winnipeg e não convidara Paul; este passara o dia de Natal sozinho no quarto, tendo ligado ao pai para uma conversa algo desconfortável em que mentira sobre tudo e mais alguma coisa, tal como nos velhos tempos — até 28 de dezembro, o nadir dessa semana morta entre o Natal e o Ano Novo, altura em que se vestiu a rigor e regressou ao System Soundbar, numa terça-feira à noite, cabelo penteado para trás com gel, camisa abotoada que comprara de propósito para o efeito. Envergava as mesmas calças de ganga que usara da última vez que ali estivera e só quando chegou à discoteca se lembrou de que ainda tinha a pequena embalagem de comprimidos azuis num dos bolsos da frente.
Entrou no System, e lá estavam os membros dos Baltica, Annika, Charlie e Theo, parados junto ao bar. Provavelmente tinham terminado um concerto ali perto. Era uma espécie de sinal. Estaria Annika mais bela desde a última vez que a vira? Parecia-lhe possível que assim fosse. A sua vida universitária estava praticamente concluída, mas, quando olhava para ela, via uma nova versão da realidade, outro tipo de vida que talvez pudesse levar. Achava que não era, objetivamente, um tipo malparecido. Tinha algum talento para a música. Talvez o seu passado fizesse dele uma pessoa interessante. Havia uma versão do mundo em que namorava Annika e era, sob vários aspetos, uma pessoa de sucesso, ainda que não tivesse grande jeito para os estudos. Poderia voltar a trabalhar no comércio, levar a coisa mais a sério dessa vez e ter uma vida decente.
— Ouça — explicou ele ao orientador em Utah, vinte anos adiante, no futuro —, é óbvio que entretanto tive tempo para pensar sobre isso e é claro que reconheço que essa linha de pensamento era disparatada e egocêntrica, mas ela era tão bonita que pensei «Vai fazer-me sair disto», no sentido de me ajudar a deixar de me sentir um fracassado...
«É agora ou nunca», pensou Paul, aproximando-se do bar cheio de coragem.
— Ei — disse Theo. — És tu. O tipo da outra vez.
— Segui o teu conselho! — respondeu-lhe Paul.
— Qual conselho? — perguntou Charlie.
— O System Soundbar, às terças.
— Ah, certo — retorquiu Charlie. — Sim, claro.
— Bem aparecido sejas, pá — disse Theo, e Paul sentiu um calorzinho no corpo. Sorriu para todos, em especial para Annika.
— Olá — cumprimentou ela, não num tom desagradável, mas com a mesma prudência irritante, como se esperasse que todos os que olhavam para ela a convidassem para sair, embora, claro está, fosse exatamente o que Paul tencionava fazer.
Charlie estava a dizer algo a Theo, que se inclinou para o ouvir melhor. (Breve retrato de Charlie Wu: um tipo pequeno com óculos e um penteado típico de escritório, vestido com camisa branca abotoada e calças de ganga, as mãos enfiadas nos bolsos e a luz refletida nos óculos, o que impedia Paul de lhe ver realmente os olhos.)
— Ouve — disse Paul a Annika. Ela olhou para ele. — Sei que não me conheces de lado nenhum, mas acho-te lindíssima e queria saber se me deixas levar-te a jantar um dia destes.
— Não, obrigada — retorquiu ela. A atenção de Theo desviara-se de Charlie para Paul, e agora observava-o atentamente, como se receasse ter de intervir; e Paul compreendeu: a noite deles correra bem até ele aparecer. Paul era o problema. Charlie estava a limpar os óculos, aparentemente abstraído, acenando com a cabeça ao som da música, ao mesmo tempo que limpava as lentes.
Paul forçou um sorriso e encolheu os ombros.
— OK — retorquiu —, tudo bem, é na boa, só achei que não custava nada perguntar.
— Nunca custa nada perguntar — concordou Annika.
— Estão numa de tomar E? — perguntou Paul.
— Sei lá — disse ele ao orientador, vinte anos depois —, para ser sincero, não sei que ideia foi a minha. Toda a minha memória é uma espécie de branca, não sabia o que ia dizer antes de o dizer...
— Não é nada a minha cena — justificou-se Paul, porque agora estavam todos a olhar para ele —, quer dizer, não faço juízos de valor, só nunca tive muito interesse, mas a minha irmã deu-me isto. — Exibiu a pequena embalagem na palma da mão. — Não os quero vender, também não é a minha onda, mas acho que seria um desperdício deitá-los pela sanita abaixo, por isso perguntei.
Annika sorriu.
— Acho que experimentei esses na semana passada — disse ela. — Eram exatamente da mesma cor.
— Agora percebe por que motivo nunca lhe contei esta história antes — disse Paul ao orientador, vinte anos depois do System Soundbar. — Não sabia que os comprimidos eram maus. Estava convencido de que tinha tido uma má reação, entende, como se o meu sistema estivesse lixado por ter largado os opioides ou isso, e não que os comprimidos fizessem mal a todas as pessoas que os experimentassem, quanto mais...
— Bem, podem ficar com eles, se quiserem — disse a esse grupo que, à semelhança de todos os grupos com que se cruzara ao longo da vida, iria rejeitá-lo, e Annika sorriu, enquanto lhe tirava a embalagem da mão. — Vemo-nos por aí — disse ele dirigindo-se a todos, mas em especial a ela, porque às vezes «Não, obrigada» significa «Agora não, talvez noutro dia», ainda que os comprimidos, os comprimidos, os comprimidos...
— Obrigada — agradeceu-lhe ela.
— Bem, só aquela reação dela... — disse Paul ao orientador. — O senhor está a olhar para mim com esse ar, mas fiquei mesmo convencido de que ela já tinha experimentado os comprimidos na semana anterior, como me disse, e a maneira como sorriu fez-me pensar que tinha tido uma boa reação, que tinha gostado mesmo deles, ou seja, que o que me aconteceu quando os experimentei só podia ter sido uma má reação, como já disse, não algo que também aconteceria... Ouça, sei que estou a ser repetitivo, mas preciso que compreenda que nunca poderia ter previsto, quer dizer, sei como isto soa, mas sinceramente não fazia a menor ideia de que...
Depois de Paul se ter afastado, Annika pegou num comprimido e deu os outros dois a Charlie, cujo coração parou meia hora depois, na pista de dança.
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