
1
Bea
Três anos mais tarde
8 de setembro de 1943
LIVRO BANIDO
A Rapariga de Seda Artificial, publicado em 1932 pela romancista alemã Irmgard Keun, conta a história de uma jovem berlinense que recorre à prostituição numa tentativa de se tornar uma estrela de cabaret. Os nazis lamentaram o seu «retrato vulgar da feminilidade alemã». A própria vida de Irmgard assemelha-se a ficção. Após ser colocada na lista negra e de tentar, de forma infrutífera, processar a Gestapo por perda de rendimentos, fugiu da Alemanha, fingindo a própria morte em 1940, por forma a visitar os seus pais com documentos falsos.
Beatrice Gold passava pela vida como um fogo desenfreado. Não detinha uma beleza no sentido mais tradicional; cada traço era excessivo para o seu rosto. Lábios a lembrar uma porção generosa de compota de morango, caracóis escuros e revoltos e um brilho nos olhos que denunciava travessura. E, nesse preciso momento, tantos apuros quanto possível.
Estava nua, deitada, esmagada sob o corpo quente de um homem, de pele curtida pelo sal e a arder junto à dela, com a areia das dunas a arranhar-lhe as costas.
– Jimmy, seu idiota! Porque tinhas de me distrair? Perdi o último autocarro para a cidade.
Ele sorriu e passou-lhe as mãos pelos braços, levando-os até à areia.
– Distraí-te? Mas que romântica.
– Tu percebeste.
– Escuta, o melhor é ficares. Não queres ser apanhada na rua depois do recolher obrigatório.
Ela sorriu docemente.
– Por favor, o imbecil do boche não me apanha. São quase todos calhaus com dois olhos.
Ele deixou-lhe um rasto de beijos pelo pescoço.
– És tão linda, Bea. Ainda que sejas mais desbocada do que um marujo.
– Comporta-te – bufou ela. – Olha para o meu estado. Não sei o que é um batom há três anos e um cabide tem mais curvas do que eu.
Os pensamentos de Bea derivaram instantaneamente para algumas das «germistas» que se passeavam pela cidade bem maquilhadas e perfumadas. Algumas raparigas em Jersey faziam qualquer coisa por um punhado de Reichsmarks sujos.
Jimmy inclinou-se para beijá-la, mas o joelho bem posicionado junto à virilha rapidamente a libertou para procurar o vestido e enfiá-lo cabeça abaixo, antes de meter os pés num feio par de tamancos de madeira.
– Vou levar um valente raspanete se me atrasar – murmurou ela, abotoando o casaco de lã. – Já sabes como é a minha mãe… É a única mulher que é capaz de ir de férias e voltar com um escaldão na língua.
Jimmy riu, as bochechas formavam covinhas. O sol de início de tarde evidenciou-lhe o profundo verde seco dos olhos.
– Férias – suspirou ele, pondo-se de pé relutantemente. – Lembras-te do que isso era?
Ele puxou-a para perto, percorrendo-lhe o pescoço com beijos.
– Um dia, Bea, viajaremos por toda a Europa, sem recolheres obrigatórios, sem arames farpados. Só praias vazias e cerveja fresca.
Jimmy La Mottée, filho de um agricultor de Saint Ouen. Se não o amasse tanto, Bea nunca teria aguentado. A viagem até casa dele no lado ocidental da ilha, ida de Saint Helier, era uma aventura e tanto numa bicicleta com mangueiras no lugar de pneus. A saúde física de Bea andava muito em baixo. Antes da guerra sentia um aperto, mas agora, após cada viagem, parecia que os pulmões podiam saltar-lhe para fora do peito.
O purgatório começara às 18 horas, quando os correios de Broad Street fecharam. Bea olhara para baixo, para as pernas escanzeladas. A fome era uma dor crónica no estômago. Parecia errado queixar-se – afinal, estavam todos no mesmo barco –, mas os três anos de ocupação tinham deixado marcas. Até o seu espírito parecia ter definhado.
Bea apercebeu-se, com mágoa, do que mais falta lhe fizera, mais ainda do que uma boa refeição: ir até à biblioteca, onde a irmã de Jimmy e sua melhor amiga, Grace, trabalhava, e requisitar o livro que quisesse; perder-se no encanto de um filme de Hollywood; nadar nua sob as estrelas. O controlo cerrado dos mais ínfimos pormenores das suas vidas tinha sido apertado, e os tentáculos do poder nazi estendiam-se lentamente.
Bea continuava a matutar quando se apercebeu que Jimmy lhe perguntara qualquer coisa.
– O quê? Disseste alguma coisa?
– Que resposta tão atenciosa ao meu pedido de casamento.
Ele olhou para ela com um sorriso irónico. Tinha grãos de areia espalhados pelo cabelo louro-escuro.
– Não sejas tolo! Espera… não estás a falar a sério, pois não?
– Por favor, Bea, escuta. É importante. – Jimmy empurrou-a em direção às dunas, escondidos de olhares alheios. – Quero casar contigo.
– Andas a tramar alguma coisa. O que é?
Ele riu e passou as mãos pelo cabelo, soltando a areia.
– Muito bem. Vou embora da ilha. – Um nervo latejava-lhe sob o maxilar.
– Quando? – exigiu ela saber.
– Amanhã, se as marés o permitirem. Mas, escuta, tens de acreditar em mim. Quando chegar a Inglaterra, esperarei por ti. Quando a guerra acabar, podes juntar-te a mim e podemos casar lá. Talvez nos possamos até mudar para Londres. Não podes ficar a trabalhar nos correios para o resto da vida.
– Mas… mas isso é uma loucura, Jimmy. És agricultor, não és pescador. O que sabes tu do mar? As correntes em Jersey são mortais.
– Somos três, mais um pescador francês do leste da ilha que tem combustível.
– Mas não podes fugir a partir da costa leste. Isso é suicídio.
– E não sairemos de lá, partimos do ocidente.
– Mas isso é ainda mais perigoso! Vão ter de apanhar a corrente certa, sem tirar nem pôr. E se não forem levados pelos ares por uma mina, serão esmagados contra as rochas.
– O Denis Vibert conseguiu fugir para Inglaterra num barco a remos de dois metros e meio – disse ele na defensiva, pegando na areia e deixando-a escapar por entre os dedos. – Além disso, tenho uma garantia – continuou, matreiro.
Jimmy abriu um pouco o casaco, onde Bea viu a ponta de uma pistola.
– É uma Walther P38 – afirmou ele, repleto de orgulho, como se lhe mostrasse um vitelo gordo.
– É alemã? – Ela ficou pasma. – Roubaste-a?
– Então, Bea? Não é roubo se for de um germe.
O pânico tomou conta dela, de uma ponta à outra.
– E… e o Dennis Audrain no ano passado? E o Peter Hassall e o Maurice Gould? O Dennis afogou-se. O Peter e o Maurice estão na prisão, sabe Deus onde, no continente. Não. É demasiado perigoso, sobretudo se levares essa coisa.
O último grão de areia escorreu-lhe da mão e ele voltou-se para ela.
– A questão, Bea, é que por cada dez homens que falharam, houve um que conseguiu, provando que é possível. Posso acabar na mansão de Gloucester Street, mas e então? Pelo menos, terei uma história para contar aos netos.
Uma história para contar aos netos?
Não havia fábulas conhecidas com fins heroicos nesta ocupação, apenas incerteza, fome e sobrevivência. Bea lançou o olhar para lá das dunas, ao longo de toda a extensão da Baía de Saint Ouen, com a areia dourada agora coberta por terríveis gatafunhos de arame farpado, sentindo algo a calcificar dentro de si. A ilha, outrora tão bonita, era agora uma fortificação ancorada. Bea sentia-se hermeticamente selada, para lá de centenas de milhares de metros cúbicos de betão e outros despojos de guerra. Dia e noite, os motores fumegavam e as máquinas buliam, de modo a integrar aquelas anciãs ilhas verdes no poderoso e intransponível muro atlântico de Hitler.
Ela fechou os olhos para se poupar da imagem da guerra e sentiu a brisa marítima a afagar-lhe o cabelo. Jimmy suspirou ao vento. Ser dissuadido pelos pais de se alistar no exército britânico tinha sido um duro golpe para o seu ego. Assistira a como praticamente quase todos os seus amigos tinham corrido para os barcos de evacuação, ansiosos por se juntarem à luta, deixando-o para trás, para ficar na quinta a contribuir para um serviço essencial. Os pais tinham-lhe enaltecido a isenção agrícola como um contributo nobre e heroico para a guerra, mas mungir vacas nunca seria suficiente para um homem tão patriótico quanto Jimmy.
– Bea… – Ele empurrou-a com o ombro. – Não te estou a pedir permissão – disse ele. – Eu vou. – Pegou-lhe na mão e a voz suavizou-se. – Mas gostava de partir sabendo que queres ser minha mulher. Por favor, acredita. Se ficar aqui, acho que dou em louco.
– Oh, muito obrigada.
– Não, não entendeste. Tenta ver as coisas pelo meu ponto de vista. Os meus irmãos estão a lutar pelos britânicos, e o que faço eu? Planto trigo para o pão dos alemães. Ainda hoje tive um dos comandos agrícolas deles em cima de mim. Parece que não entendem que a Mãe Natureza não obedece às ordens da Feldkommandantur 515. No outro dia, encontrei um dos malditos no campo, a mexer nas tetas de uma vaca e a exigir ver os registos dos lucros para saber se eu andava a vender no mercado negro.
Ele parou, passando a mão pelos pelos do queixo. A raiva de Jimmy era palpável. Alimentava-se dela, como um íman de fagulhas de metal.
– Sinto-me um animal enjaulado, percebes, Bea? A ilha é uma prisão sem muros.
Bea passou-lhe a mão pelo pescoço, sentindo a tensão dos músculos contraídos.
– Muito bem, já te decidiste. Mas que fique registado que acho que és maluco.
– E tu és maluca o suficiente para seres minha mulher?
Ela riu; caso contrário, choraria.
– Sou louca.
– Isso é um sim?
Ela anuiu e conteve as lágrimas. Nunca o deixaria vê-la chorar. Até mesmo quando o pai morrera, não mostrara a sua fragilidade a ninguém.
– Oh, Bea, não te sei dizer o quão feliz me fazes – disse Jimmy, pressionando os lábios contra os dela, num alívio ofegante. Mas sentiu o medo a infiltrar-se nos beijos e sentiu o peso frio e duro da arma roubada a pressionar-lhe o peito.
Ele tirou algo do bolso.
– Oh, Jimmy… – Ela girou o anel de estanho maltratado por entre os dedos.
– Mandei gravar as nossas iniciais, olha. «JLM. BG.» É só temporário, até arranjar algo melhor – continuou ele, em busca de uma reação no rosto dela.
Nesse momento, Bea viu os efeitos da ocupação, do tédio e da privação na cara dele. Enfiou o anel no dedo.
– Este já é o melhor. – Bea beijou-o ternamente. – Amo-te muito, Jimmy La Mottée.
Sentiu-lhes o cheiro antes de os ver. O medo assolou-a. Jimmy também se apercebeu e, instintivamente, empurrou-a para as dunas.
No meio dos juncos, discerniram uma patrulha Todt a levar um grupo de escravos russos e polacos pela praia. Havia uma pedreira não muito longe de onde se encontravam, e os prisioneiros estavam a marchar de regresso ao campo de trabalhos forçados. Bea gemeu baixinho ao vê-los vestidos com apenas uns trapos e cobertos de lama e cimento após um dia de trabalho, pejados de piolhos e doenças.
Desde a chegada de escravos e trabalhadores forçados no último mês de agosto, parecia que o ténue fluxo de gente para a ilha se tornara um mar de gente, e, agora, um ano mais tarde, Jersey estava repleta de almas miseráveis. Bea vira os campos espalhados pela ilha: casebres de madeira, longos e baixos, rodeados de arame farpado, cheios de gente escanzelada, com fome e a sofrer. Já não se sentia o doce odor de frésias e cravos, de tomates deliciosos ou de batatas novas nos campos de Jersey. Só esqueletos andantes.
As silhuetas, rígidas e melancólicas, aproximavam-se, e Bea deu por si hipnotizada com os seus rostos, os olhos assombrados sob os bonés militares. Bea forçou-se para olhar com mais atenção para um deles, tentando humanizar a vida que para os alemães era untermensch – sub-humana.
– É um miúdo – murmurou horrorizada.
– Chiu. Se eles estão a regressar, já deve passar do recolher obrigatório. Estamos numa zona militar, não te esqueças. Eles matam-nos logo se nos veem aqui.
O rapaz tinha 14 anos… 15 no máximo. Bea estremeceu conforme ele se aproximou. Ela estava magra, mas ele não passava de ossos cobertos de pele.
Antes que se conseguisse impedir, levou a mão à bolsa e puxou de um nabo velho que encontrara na berma da estrada. Com toda a força, atirou-o por cima da duna e viu-o cair e rolar pela praia até aos pés do rapaz.
Jimmy voltou-se, horrorizado, com os olhos tão abertos, que ela lhe via todo o branco dos olhos.
– Halt! – gritou um guarda, a sua pronúncia acentuada levada pelo vento.
Os escravos atiraram-se ao nabo, mas o rapaz, mais pequeno e ágil, agarrou-o e devorou-o, com espuma e lama a escorrer-lhe pela boca.
– O que fizeste, Bea? – sussurrou Jimmy.
O guarda, vestido de caqui e com o cabelo a brilhar como couro envernizado, avançou para o rapaz e, calmamente, como quem faz festas a um gato, pegou na espingarda e bateu-lhe com ela no rosto. Bea ouviu o osso a partir quando ele caiu ao chão.
– Nehmen Sie Ihren Hut ab! Retira o chapéu!
O rapaz levantou a cabeça e, com o sangue a escorrer do corte na testa, puxou do chapéu.
– Porque não estás de chapéu? Volta a pô-lo! – ordenou ele, piscando o olho aos outros guardas.
Mal voltou a colocá-lo, o guarda lançou a coronha da espingarda à cabeça do rapaz. Desta vez, o chapéu caiu para trás com a força do golpe. Rindo, outro guarda voltou a colocar o chapéu e fez um gesto ao colega. Dois guardas seguraram o rapaz, cujas pernas ensanguentadas balouçavam sem tocar o chão.
A terrível realidade abateu-se sobre Bea. Era apenas um joguinho doentio para aquela escumalha ver quantas vezes lhe tiravam o chapéu até ele morrer.
– Não consigo ver isto – sussurrou ela.
As lágrimas desfocaram-lhe a visão enquanto se virava e se arrastava pelas dunas até ao sítio onde tinham deixado as bicicletas, escondidas por uns arbustos junto à estrada costeira.
Ela inclinou-se sobre a bicicleta, consumida pela culpa da estupidez do seu ato. A dor excruciante da sua raiva desbloqueou outras recordações mais duras que a assolaram sem aviso prévio. O baque surdo das bombas. Sangue a escorrer pelas tábuas brancas do barco pesqueiro do pai. Os campos de Jersey tinham-se tornado vermelhos com o sangue e os tomates naquele dia de verão de 1940. Bea trabalhara até tarde nos correios quando os bombistas chegaram. A noite em que o pai se esvaiu em sangue no barco de pesca. Repletos de medo, confusão e dor, todos tinham indagado o que se seguiria.
Três anos mais tarde, era isto.
– Odeio-os. – Bea fervia, pressentindo o asco a infiltrar-se por todos os cantos e recantos do seu espírito. – Odeio estes pulhas!
Jimmy puxou-a para o seu abraço e levou a boca até ao ouvido dela.
– Vês, Bea? Percebes agora porque tenho de fugir? As pessoas têm de saber destas coisas. Os nazis dizem a Inglaterra que esta é uma ocupação de exemplo. As pessoas têm de saber o que realmente se passa aqui.
Ela anuiu, surpreendendo-se por concordar, mas ainda mais espantada por se aperceber de que, pela primeira vez desde que o pai fora desfeito por uma bomba alemã, estava finalmente a chorar.
O vento soprou pelas longas ervas das dunas, lançando espirais de areia para os seus rostos.
– Lamento muito, Bea – disse Jimmy, lutando para conter as próprias lágrimas. – Fica comigo hoje, por favor.
Ela anuiu e levantou o pequeno queixo afilado.
– Fico. Porque já decidi, vou contigo. Também vou fugir da ilha.
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