CAPÍTULO UM
Se dissesse que matei um homem com um simples olhar, ficariam à espera para ouvir o resto? O porquê, o como, o que aconteceu a seguir? Ou fugiriam de mim, deste espelho manchado, deste corpo de carne invulgar? Eu conheço-os. Sei que não se irão embora, mas deixem-me começar com o seguinte: uma rapariga, à beira de um penhasco, com o seu estranho cabelo a esvoaçar ao vento. Um rapaz, lá em baixo, no seu barco. Deixemos que se desvelem um ao outro, a sua história mais velha do que o tempo. Deixemos que se revelem até que revelem demasiado.
Permitam-me que comece pela minha ilha rochosa.
Estávamos lá havia quatro anos, eu e as minhas irmãs mais velhas, banidas eternamente por nossa própria escolha. E, em quase todos os aspetos, o lugar adequava-se perfeitamente às minhas necessidades, pois era deserto, bonito e inóspito. Mas a eternidade é muito tempo, e houve dias em que achei que enlouquecia — que, na verdade, já enlouquecera.
Sim, tínhamos escapado, sim, tínhamos sobrevivido —, mas a nossa vida era uma meia vida, escondidas nas cavernas e nas som- bras. O meu cão, Argentus, as minhas irmãs e eu... — o meu nome por vezes sussurrado pela brisa.
Medusa, Medusa, Medusa — no seu ecoar e nas decisões toma- das, a minha vida, as minhas verdades, os meus dias mais calmos, os pensamentos que se formaram, tudo se desvaneceu. E que restou? Estes afloramentos irregulares, a rapariga arrogante, justamente punida, uma história de cobras. A realidade ultrajante: nunca soube de uma mudança que não fosse monstruosa. E mais uma verdade: eu estava zangada e sozinha, e a raiva e a solidão podem acabar por ter o mesmo sabor.
Quatro anos presa numa ilha é muito tempo para pensar em tudo o que correu mal na nossa vida. Aquilo que as pessoas nos fizeram e que estava fora do nosso controlo. Quatro anos de solidão aguçam-nos a fome de amizade e insuflam os nossos sonhos de amor. E então permanecemos no topo de um penhasco, escondidos atrás de uma pedra. O vento açoita uma vela, e um cão desconhecido começa a ladrar. Nesse momento, surge à vista um rapaz, e sentimos que os nossos sonhos poderão em breve tornar-se realidade. Só que desta vez a vida não será revoltante. Será boa e feliz.
A primeira coisa que vi deste rapaz — eu naquele penhasco, a espreitar, ele naquele barco, sem ver — foram as suas costas. Encantadoras. O modo como lançou a sua âncora nas minhas águas. Depois, quando se endireitou, o contorno da sua cabeça. Uma cabeça perfeita! Voltou-se, com o rosto virado para a minha ilha. Olhou, mas não viu.
Sei muito sobre beleza. Na verdade, até sei demasiado. Mas nunca vi ninguém como ele.
Devia ter mais ou menos a minha idade, era alto e bem proporcionado, embora um pouco magro. Parecia ter vindo de longe, no seu barco, e não saber pescar. A luz do Sol adorou a sua cabeça, criando diamantes na água para a coroar. O seu peito era como um tambor, no qual o mundo tocava um ritmo, e a sua boca, a música ao som da qual se podia dançar.
Era doloroso olhar para aquele rapaz, mas não conseguia parar de o observar. Queria comê-lo como se fosse um bolo de mel. Podia ter sido desejo, podia ter sido pavor. Queria que ele me visse, mas ao mesmo tempo temia que o fizesse. O meu coração surpreendeu-me como nova ferida a precisar de cuidados.
Ele parecia estar a avaliar a dimensão e a intransponibilidade das minhas rochas. Um cão, o responsável pelos latidos que tinham começado por me chamar a atenção, agitava-se no convés do barco, como uma bola de luz.
— Orado! — gritou-lhe o rapaz. — Pelo amor de Zeus, acalma-te!
Parecia um pouco enervado, mas a sua voz era clara. Tinha um sotaque estranho, o que me levou a presumir que vinha de longe. O cão Orado sentou-se, a abanar a cauda. O meu coração ferido animou-se ao ver aquela criatura. Um amigo para Argentus?, perguntei a mim mesma, pensando na solidão que o meu cão devia sentir sem ter nenhum companheiro da sua espécie.
Contudo, devem imaginar o que me ocorreu realmente: um amigo para mim.
CAPÍTULO DOIS
O jovem subiu para uma rocha e sentou-se com as pernas suspensas sobre a água, sem fazer nada a não ser dar umas palmadinhas na cabeça de Orado. A sua postura curvada deu-me a impressão de que não queria estar ali e também de que estava completamente perdido. Parecia prestes a saltar de novo para o convés, desenrolar as velas e partir.
Faz isso, incitei-o, silenciosamente, do meu esconderijo. Sai deste lugar. Será melhor para nós dois. Os meus penhascos são demasiado altos por uma razão.
Ao mesmo tempo que estes pensamentos floresciam na minha cabeça como flores indesejadas, um novo surgiu. Vem, vem até cá acima. Vem ver-me!
Mas ele nunca poderia ver-me. Medusa, disse para mim mesma. Imagina como seria esse momento. Nem pensar. Que iria ele ver, uma rapariga ou um monstro? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Como se sentisse a minha inquietação, a minha cabeça começou a contorcer-se. Levantei as mãos e ouvi um silvo suave.
Quatro anos antes, eu tinha um cabelo lindo. Não, será mais correto dizer que há quatro anos tudo era diferente e ter um cabelo lindo até era o menos importante. Porém, tendo sido muitas vezes acusada de ser vaidosa, por pessoas que, no entanto, achavam ter o direito de me lançar olhares de desejo, posso perfeitamente dizer: o meu cabelo era lindo. Usava-o comprido e solto, exceto quando ia pescar com as minhas irmãs, porque não dá jeito nenhum ter cabelos à frente dos olhos quando se está a tentar apanhar uma lula. Era castanho-escuro, caía ondulado pelas minhas costas, e as minhas irmãs perfumavam-no com óleo de tomilho.
Nunca pensei muito nele. Era apenas o meu cabelo. Mas acabei por sentir a sua falta.
Agora o meu crânio é lar de cobras, da nuca até à testa, passando pelo topo da cabeça. É verdade. Cobras. Nem um único fio de cabelo humano. Cobras amarelas e vermelhas, cobras azuis e verdes e pretas, cobras com pintas e com riscas. Uma cobra da cor de corais. Uma outra prateada. Três ou quatro de ouro brilhante. Sou uma mulher cuja cabeça sibila, o que até poderia ser um bom início de conversa, se houvesse aqui alguém com quem conversar.
Ninguém no mundo tem uma cabeça como a minha. Pelo menos, acho que não. Mas estar enganada. Talvez existam mulheres um pouco por todo o mundo com cobras em vez de cabelo. A minha irmã Euríale achou que eram um presente dos deuses. Embora tivesse uma certa razão — foi precisamente a deusa Atena que me fez isto —, eu tinha de discordar. O meu cesto de enguias, os meus bichinhos carentes; uma cabeça de presas, excitáveis. Que jovem mulher quereria uma coisa destas na sua vida?
Quando eu respirava, sentia as cobras a respirar também, e quando os meus músculos ficavam tensos, elas erguiam-se, prontas para atacar. Euríale disse que elas eram inteligentes, porque eu o era, e que variavam de cor e disposição, porque eu também o fazia. Que eram desajeitadas, porque eu o era, e, por vezes, disciplinadas, tal como eu. No entanto, não estávamos propriamente em simbiose, porque, apesar de tudo, eu nem sempre conseguia prever como iriam comportar-se. Quatro anos juntas e eu ainda não era totalmente a sua dona. Elas assustavam-me.
Fechei os olhos e tentei não pensar em Atena e no seu terrível aviso antes de fugirmos de nossa casa: «Ai do infeliz que se atreva a olhar para ti agora!» Atena não tinha ficado mais tempo para se explicar melhor. Chocadas e tristes, fugimos logo a seguir. Eu ainda não fazia ideia do tipo de infelicidade a que ela se referia.
De qualquer forma, não é que eu quisesse que alguém olhasse para mim. Estava tão farta por toda a minha vida estarem sempre a olhar para mim, e agora, com as cobras, a única coisa que queria fazer era esconder-me. Faziam-me sentir horrível, o que, suspeito, seria a verdadeira intenção de Atena.
Senti um puxão da pequena serpente a que chamei Eco. Era cor-de-rosa, com faixas de cor esmeralda por todo o corpo e, na ver- dade, ela era doce por natureza. Virei-me na direção para a qual Eco me puxava, e alguma coisa prendeu a minha atenção. A ponta de uma espada, a brilhar no convés do barco do rapaz, por baixo de uma pele de cabra. Não era uma simples espada velha e castigada pelo clima, cheia de cortes e de resquícios de sangue cor de ferrugem, como as dos outros homens. Não. Esta era novinha em folha e a sua extremidade reluzia.
Eu tinha a certeza de que nunca havia sido usada.
Eco sibilou, mas fechei a minha mente ao seu aviso. Fazia quatro longos anos que não tinha companhia da minha idade, e o rapaz era tão bonito. Apesar da espada, preferia correr o risco de continuar a olhar.
*
Foram Argentus e Orado que intercederam por nós. Os nos- sos Cupidos caninos. O meu cão apanhou o cheiro do cão do rapaz através da brisa, e, antes que o pudesse deter, Argentus correu para fora da nossa caverna, com as pernas longas a deslizar pelas curvas fechadas dos rochedos, em direção à costa.
Orado, por sua vez, saltou do promontório e galopou na direção do meu cão-lobo, como um imperador a saudar um embaixador na sua ilha. Mal me atrevia a respirar, enquanto os dois animais andavam à volta um do outro. O rapaz levantou-se com expressão admirada, voltando a olhar para cima, para a rocha escarpada, como que para tentar perceber de onde vinha Argentus. Voltou-se para o convés do seu barco, onde a espada permanecia parcialmente escondida. Para meu alívio, deixou-a ficar onde estava.
— Olá — ouvi-o cumprimentar Argentus.
Ao som da sua voz, ali mesmo na extremidade do penhasco, as minhas cobras recuaram, enrolando-se de tal forma, que a minha cabeça parecia um ninho de conchas de caracóis. Argentus começou a rosnar. «Calma», disse eu às minhas cobras. «Vejam.» O jovem agachou-se para lhe fazer uma festinha na cabeça, mas o meu cão recuou.
— Quem és tu? — gritei lá para baixo. Falei com um certo tom de pânico, preocupada que a desconfiança de Argentus em relação a esta nova chegada o levasse a entrar no barco a qualquer momento. E também falei com esperança: parecia-me da maior importância que este rapaz permanecesse na minha ilha — por um dia, uma semana, um mês. Talvez mais. Uma reviravolta na minha sorte. Não iria deixá-la escapar.
Sobressaltado, o rapaz olhou para cima, mas eu sabia que ele não me conseguia ver: tornara-me especialista em me esconder à vista.
— Chamo-me Perseu! — gritou, por sua vez.
Perseu. Assim mesmo, como se as nuvens devessem saber o seu nome. Sem nada a esconder.
Oh, deuses. Perseu. Ainda agora, o seu nome continua a provocar-me um arrepio ao longo da espinha.
Talvez se Argentus não tivesse rosnado? Talvez se eu não me sentisse sozinha? Talvez se eu não tivesse falado?
Talvez, talvez, talvez. Porque é que nós, mortais, olhamos sem- pre para trás e imaginamos que havia um caminho mais simples? Pensamos que nada disto teria acontecido. Pensamos, por exemplo, que Perseu teria continuado a navegar, com a sua espada, e sabe Zeus com que mais por baixo daquela pele de cabra, e eu não esta- ria a falar convosco desta maneira. Poderia ter continuado à espera, naquela ilha, até hoje. Não estaria certamente aqui.
Mas não foi assim que as coisas aconteceram. E o caminho mais simples nunca foi a minha opção.
Perseu começou a andar de um lado para o outro, logo abaixo do caminho de seixos que conduzia diretamente ao ponto onde me encontrava escondida.
— Quem és tu? — perguntou.
Oh, ninguém. Apenas uma rapariga que fez viagem só de ida para uma ilha com as suas estranhas irmãs e o seu cão. Aqui não há nada para ver...
— Fica onde estás — gritei, já que ele procurava agora um espaço entre as rochas por onde pudesse trepar.
Perseu recuou e olhou para o promontório desolado.
— O quê... aqui?
— Algum problema? — soei mais arrogante do que me sentia. — Quem és? Não te vejo — ele conseguiu chegar até ao lugar de onde Argentus emergira.
— Não podes subir! — gritei.
— Tens alguma coisa para comer? — perguntou. — Eu... quer dizer, o meu cão está com muita fome.
— Tens o mar atrás de ti. Podes apanhar peixe.
— Não tenho lá muito jeito.
— Não consegues segurar uma cana de pesca?
Perseu riu-se, um som que provocou fendas na minha determinação, um som que ainda hoje pode ser encontrado na minha alma. Aqui estava um rapaz que conseguia rir-se de si mesmo. Invulgar.
— Por favor — pediu. — Prometo que não te irei incomodar durante muito tempo.
— Para onde querias ir? — perguntei.
Perseu girou à sua volta, absorvendo o azul infinito da água. — Talvez já cá esteja — respondeu.
Estendeu os braços, voltando-se para o vermelho dos rochedos que se elevavam em direção ao Sol. Perguntei-me o que aconteceria, se eu saltasse dali e me deixasse cair... se ele me apanharia.
— Está bem — continuou. — Admito. Estou perdido.
— Ele não consegue pescar nem consegue ler as estrelas — digo. — Há alguma coisa que ele saiba fazer?
Passou uma mão pelo cabelo e o meu coração amoleceu como uma gema de ovo numa panela. «Vem cá», pediu uma voz dentro de mim. «Aproxima-te e deixa-me ver-te.»
E, a seguir, aquela outra voz: «Ai do infeliz que se atreva a olhar para ti agora!»
— Fui enviado numa missão — respondeu Perseu —, mas o vento afastou-me do meu caminho.
— Uma missão?
— Não posso falar sobre isso. E muito menos gritá-lo para um rochedo.
— A tua mãe não te ensinou a não falar com estranhos? — perguntei.
— Podes ser qualquer pessoa — replicou.
— Precisamente. Não devia estar aqui, Sr. Perseu.
— Concordo inteiramente — disse ele. — Mas quando um rei decide arruinar a tua vida, não tens grande voto na matéria — deu um pontapé numa pedra e uma topada com o dedo do pé, mas retorceu-se em silêncio.
De que rei estava ele a falar? E por que motivo se calou quando fiz referência à sua mãe? Eu queria saber. Queria histórias, companhia, proximidade. Mas sentia-me em agonia pelas minhas dúvidas.
Perseu devia ter ficado lá em baixo. Eu sabia-o. Argentus sabia-o. As minhas cobras sabiam-no. Teria sido melhor ignorá-lo, dizer-lhe que se metesse no seu barco e voltasse para o sítio de onde viera.
Porém, quando a dor da solidão e a sopa amarga do tédio se juntam, a situação é mais perigosa do que qualquer veneno de cobra. E, pelo que parecia, Perseu tinha homens poderosos a interferir na sua felicidade.
Olhei para o horizonte. Estava quase a anoitecer. As minhas irmãs Esteno e Euríale chegariam em breve. Que diria Perseu, quando as visse a surgir no céu, e que lhe fariam elas? Poderíamos ter um rapaz morto nas mãos. Tinha de tomar uma decisão, e depressa.
— Acabei de grelhar uns peixes — disse eu. (Palavras épicas.) — Se quiseres, podes comer. Há uma enseada aí à esquerda, com a entrada escondida. Podes atracar aí o teu barco.
Nunca em toda a minha vida falara tanto com um rapaz e, quando Perseu sorriu, senti o coração a doer-me. Numa questão de minutos a minha vida mudara. E, resumidamente, poderei dizer: senti-me feliz.
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