A segunda vez que vi Mark E. Smith ao vivo foi, sei-o agora, também a última. Out.Fest, Barreiro, 2013: os The Fall sobem ao palco para apresentar os temas daquele que era, à altura, o seu mais recente trabalho de estúdio, "Re-Mit". Consta que, horas antes do concerto, Mark E. Smith passou os seus tempos mortos na Margem Sul emborcando umas garrafitas de vinho tinto. Gostava de vinho, o Mark, e também gostava de cerveja. Durante o concerto, estava visivelmente embriagado, bem-disposto, passando até o microfone a alguns dos fãs presentes na fila da frente (e um deles era eu), deixando-os cantar o refrão de “Sparta 2#”. Mas não se pense que ele era um alcoólico empedernido ao ler estas linhas. Mark E. Smith gostava de álcool, como qualquer homem da classe operária gosta de álcool, especialmente de vinho e de cerveja: como uma fuga. E ele era um operário. Um operário do punk, cujo trabalho era ser Mark E. Smith. E foi dono dos seus próprios meios de produção ao longo de mais de 40 anos.
É difícil não se ser um operário em Manchester, onde nasceu e onde nasceram os Fall. É uma cidade industrial, sempre diametralmente oposta à grande Londres, mais burguesa, mais ricaça, mais do mundo que das pessoas. Não que Mark E. Smith morresse particularmente de amores por Manchester ou pelas suas pessoas: “Não gosto das pessoas do Norte e de Manchester”, disse uma vez. E Manchester também não parece nutrir grande simpatia por uma das suas maiores figuras musicais; uma visita à cidade, em dezembro, permitiu encontrar diversos murais, tributos e t-shirts de gente como Morrissey, Ian Brown, Ian Curtis ou Liam Gallagher, mas nada de Mark E. Smith – que tinha dentro de si todo o mau-carácter e rebeldia punk destes quatro, e a triplicar. Não era conhecido por ser simpático, mas a sua maior virtude era, precisamente, a sua maledicência, algo que muito falta num mundo onde o direito a ofender (de forma honesta e inteligente, e não bacoca, convenhamos) está sob um ataque cada vez maior.
Os alvos, esses, pareciam ser tudo o que se mexesse. Dos burguesinhos caviar (“Smile”) à paranóia dos media (“Who Makes The Nazis?”), da apropriação do futebol pela classe média (“Kicker Conspiracy”) à cena indie (“50 Year Old Man”), tudo era merecedor de um comentário que muitas vezes variava entre um de dois epítetos: ou cunts, ou arseholes. Mark E. Smith permitia-se dizer estas coisas porque era da classe operária, mas também porque era culto – afinal de contas, os The Fall vão buscar o nome a Albert Camus, e entre as suas influências estavam grandes nomes do rock mais “fora” como os Can, Captain Beefheart ou os Velvet Underground. E uma pessoa culta sabe sempre que palavras mais doem aos ouvidos da burguesia. Como Rimbaud ou Baudelaire, ou até mesmo como os Sex Pistols (Mark E. Smith viu-os, num mítico concerto em Manchester, em 1976, do qual se diz que todos os poucos ali presentes acabariam por formar uma banda) o intuito era chocar; fazer com que os outros olhassem para dentro de si próprios, por entre o tom jocoso e sarcástico das suas letras que, mais que poemas, eram frases de guerra.
Eram-no porque Mark E. Smith era operário, mas também revolucionário. Foi militante do Partido Socialista dos Trabalhadores, conotado com a extrema esquerda. Chegou a defender, entre gracejos, que Estaline tinha a ideia certa. Criticou tanto as mentalidades fascistas como alguma esquerda menos combativa. E, aliás, uma das fotografias mais antigas dos The Fall mostra os então membros da banda junto a um cartaz do extinto PRP-BR, partido português activo entre 1973 e 1976. Foi a classe operária que o alimentou, e seria a classe operária, todas as suas personagens e ódios e futuros destruídos, a compor a música dos The Fall, rock ritmicamente repetitivo que, mais que por canções, se espraiava em murais (e são tantas as boas frases que se podem retirar dos versos dos The Fall e escrevê-las a tinta numa parede).
Mas se é de frases que se fala, há duas que se sobrepõem às demais, de tão citadas que foram ao longo destas últimas décadas. A primeira: “se sou só eu e a tua avózinha a tocar bongos, então é The Fall”, numa descrição não só da sonoridade da banda como do facto de governar os seus destinos com mão de ferro; pela banda passaram inúmeros membros, entre ex-mulheres, músicos que duraram um par de dias ou outros que se despediram por já não aguentarem mais a ferocidade do seu vocalista (a história dos membros dos The Fall deu até um livro, "The Fallen", por Dave Simpson). A segunda: “sempre diferentes, sempre os mesmos”, dita pelo radialista John Peel, provavelmente o maior fã de sempre dos The Fall, mesmo que só com se tenha cruzado com Mark E. Smith um par de vezes, “ambas constrangedoras”, conforme explicou antes de morrer.
Sempre diferentes: ao longo de uma carreira que foi de 1976 até ontem, os The Fall lançaram, ao todo, 32 álbuns de estúdio, fora singles, compilações e EPs. Sempre os mesmos: qualquer um desses trabalhos é notoriamente The Fall – não há como não escapar à sua mui idiossincrática visão musical. Mark E. Smith descreveu o seu trabalho como “anti-música”, Miguel Esteves Cardoso disse deles nos anos 80 que eram a “oposição” ao rock, Simon Reynolds juntou-os aos compatriotas Joy Division em "Rip It Up And Start Again": “transmitiram uma sensação de estranheza e alienação que vai além do tempo e do espaço”. A sua influência chegou aos Pavement, aos Sonic Youth, aos LCD Soundsystem, bandas que muito provavelmente Mark E. Smith odiava. Não importa. Quando se constrói uma carreira sem nunca se mudar absolutamente nada a nível de personalidade – e os The Fall nunca se venderam – não é preciso dizer coisas bonitas para se ser amado.
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