Organizado pelos investigadores Ricardo Andrade, Hugo Castro e António Branco, o livro editado pela Tinta da China chega hoje às livrarias.

Em declarações à Lusa, António Branco destacou o facto de, em quase todas as entrevistas o músico e produtor “apresentar uma dimensão bastante autorreflexiva sobre os seus processos de criação, sobre a política, sobre a relação com as outras artes, nomeadamente o Teatro, e até factos da vida, que ele vai contando à medida que vai sendo entrevistado”.

O livro está organizado de forma cronológica, começando com uma entrevista publicada em 1970 no jornal Comércio do Funchal e terminando com uma divulgada em 2019 no Notícias FCSH, o que permite ao leitor “ir seguindo a voz pública de José Mário Branco ao longo de uma série de anos”.

“Pareceu-nos interessante apresentar esta sequência, com a consciência dessa dimensão autobiográfica. É como se o Zé Mário estivesse a construir a sua autobiografia, pelo menos na dimensão pública”, referiu.

O facto de ser o próprio “a falar de si, da sua obra, da sua vida política e da sua intervenção cívica” poderá, no ponto de vista de António Branco, “ser o mais interessante para toda a gente” que ler o livro.

“José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa 1970-2019” surge no âmbito de um trabalho maior de investigação, levado a cabo por Ricardo Andrade e Hugo Castro, focado no trabalho artístico de José Mário Branco ao longo de mais de 50 anos de carreira.

A “recolha extensa” que tem vindo a ser feita pelos dois etnomusicólogos inclui também documentação audiovisual e áudio, como entrevistas para rádio e televisão, que acabaram por fica de fora.

“Dada a extensão das entrevistas para a imprensa tivemos que fazer uma opção e incluir apenas entrevistas escritas”, referiu Hugo Castro.

Embora as 119 entrevistas incluídas no livro não sejam a totalidade das que foram identificadas pelos dois investigadores, “são quase”. “Este livro desse ponto de vista é bastante exaustivo”, acrescentou António Branco.

No trabalho de pesquisa foram identificados também vários textos da autoria de José Mário Branco publicados na imprensa, e os investigadores estão “absolutamente decididos que um livro com essas características terá que aparecer”.

“Como é perfeitamente possível imaginar um livro parecido com este, mas mais dedicado ao audiovisual”, referiu António Branco.

A investigação focada no trabalho artístico de José Mário Branco é “um trabalho em progresso”, iniciado há alguns anos e que “ainda vai levar algum tempo” até que esteja concluída a análise de toda a documentação recolhida.

Os três investigadores, que são também curadores do acervo de José Mário Branco, depositado na Universidade Nova de Lisboa, já fizeram algumas publicações de âmbito académico e científicas no âmbito desse trabalho, “nomeadamente um artigo publicado na Revista Portuguesa de Musicologia dedicado sobretudo à atividade de José Mário Branco durante o período de exílio em França”, recordou Hugo Castro.

Mas nesta fase o trabalho é “muito invisível”. “É sobretudo a digitalização de toda a documentação do arquivo, mais de 20 mil documentos em papel”, referiu António Branco.

Além da componente documental, o acervo de José Mário Branco inclui também “muita informação digital”, visto que o músico e produtor “começou a usar computadores muito cedo e foi preservando essa informação”.

Atualmente está disponível ‘online’ uma base de dados que reúne sobretudo documentação relacionada com a produção musical de José Mário Branco, mas está a ser construída uma outra, “muito mais abrangente, porque inclui esses aspetos e muitos outros, porque a documentação existente no acervo não tem apenas essa componente relacionada com a composição de música, a produção de discos e espetáculos, etc”.

“O objetivo será virmos a ter uma base de dados disponibilizada para toda a gente, em todo o mundo, que permita a sua consulta voluntária, mas também proporcionar aos investigadores o acesso a esse acervo sem que ponha em causa a preservação dos materiais em papel que temos”, disse António Branco.

Os investigadores contam que a nova base de dados esteja disponível em breve.

Segundo Ricardo Andrade, “quem queira procurar documentação sobre um assunto em particular vai conseguir consultar tal como ela está organizada fisicamente, com organização que o próprio foi conferindo”.

José Mário Branco organizava cada projeto em que estava envolvido em pastas, que guardavam outros itens e subpastas, “e essa organização está espelhada digitalmente”.

Um dos frutos do trabalho de digitalização e catalogação do acervo de José Mário Branco foi a edição, em 2018, de um duplo álbum com inéditos e raridades, gravados entre 1967 e 1999.

De acordo com Ricardo Andrade, “tanto em termos de repertório gravado como escrito, em partitura, há bastante material que nunca foi publicado”.

“Se considerarmos a discografia publicada em nome próprio, não é muito grande. Mas também não é tão grande quanto isso porque grande parte do trabalho dele foi, entre outras coisas, o de dirigir as gravações de outros músicos. Além da música que fez para cinema, teatro, canções que nunca gravou ou gravou em maquete ou que cantou muitas vezes ao vivo, mas nunca decidiu incluir em gravações comercializadas. Desde os tempos de França há bastante repertório inédito”, referiu.

José Mário Branco, um dos mais importantes nomes da música portuguesa do século XX, em particular desde a década de 1970, morreu aos 77 anos, em novembro de 2019.