“Este projeto já está há mais ou menos cinco anos para acontecer, ou seja, a minha ideia era para ter sido a minha quinta criação. Neste momento é a décima”, contou Mário Coelho aos jornalistas, no final de um ensaio de imprensa da peça, que estará em cena na Culturgest de 23 a 25 de janeiro, seguindo depois para Braga, capital portuguesa da Cultura, no dia 15 de fevereiro.
O cenário abre com uma rapariga num apartamento, à noite, quando de repente se abre uma porta e entram nove pessoas, nove corpos estranhos, que começam a dançar à volta dela, por cima dela, criando uma tensão e um ambiente asfixiante, à medida que a jovem os tenta expulsar, sem conseguir e sem entender.
Esta cena, faz parte de um filme que uma realizadora está a fazer, dentro do espetáculo de teatro que é “Quando eu morrer vou fazer filmes no inferno”, e que rouba o título ao filme que está a ser feito dentro dessa peça.
É uma peça de teatro que tem um filme dentro, e os temas que esse filme aborda transbordam para fora, contaminando a cabeça da protagonista, mas também as relações entre as personagens da história, seja a realizadora com a sua filha, com os produtores de cinema que lhe tentam impor as suas ideias, ou com jornalistas e público, que invadem a sua privacidade.
Esta é a “historia de uma tragédia hereditária, de uma família que tem uma maldição. E também sobre esta ideia de uma indústria de cinema. Se Portugal, de repente, tivesse uma indústria de cinema (…), talvez voltássemos muito aos tempos de como Hollywood, por exemplo, se formou nesta ótica de sistema de estúdios, onde eram os produtores que tinham a mão sobre os conteúdos”.
“E como essas duas ideias que parecem estar separadas durante grande parte do espetáculo acabam por aglutinar-se. Esta ideia do que é sermos assombrados, o que são fantasmas, fantasmas de família. Esta ideia de que já vimos ao mundo, de certa forma, com bastantes questões genéticas, hereditárias”, explicou Mário Coelho, numa referência aos fantasmas que assombram a personagem inicial.
Mas há também a “ideia de que ser assombrado também é, de repente, eu querer fazer o meu filme e isso não ser possível, eu sentir que a minha vida não é a minha vida e a minha liberdade está a ser violentada. Então era muito nessa ótica que eu queria desenvolver o espetáculo”, acrescentou.
O “embrião” da peça “que permeia o espetáculo todo”, mesmo ao longo das 40 versões que fez do texto, “é muito a relação entre mãe e filha” e as “ligações muito estreitas” entre todas as personagens, algumas mais óbvias do que outras.
O espetáculo parte da ligação do encenador à mãe, que morreu de cancro nos intestinos quando ele tinha oito anos, encaminhando-se para essa ideia da “assombração que progressivamente leva ao surgimento de manchas na cabeça das pessoas que são assombradas, pequenos tumores que vão crescendo e fazem com que as pessoas morram”.
É aqui também que entra o cinema, porque Mário Coelho herdou um diário da mãe, onde esta durante dez anos escreveu e falou da sua grande paixão pelo cinema.
“Aliás, acho que a coisa que me une mais à minha mãe é o cinema, porque era a forma de nós passarmos o tempo juntos. Eu era uma criança, ela era uma adulta, e encontrávamo-nos os dois nesta ideia de ver filmes”.
A certa altura, a doença começou a impedi-la de ir ao cinema e de sair de casa e Mário Coelho começou a ouvi-la falar muito sobre “esta ideia de sentir uma ansiedade geral e sentir que a qualquer momento podia ser atacada ou que lhe iam fazer mal”.
“E eu pensei sempre nesta ideia, neste estado de ansiedade, de que a qualquer momento algo pode acontecer. Como é que seria converter isso? Conferir uma forma corpórea a essa ideia, que é um estado psicológico, é uma sensação. E trazer de repente esta ideia de nove pessoas, que é um grupo de pessoas que entram na tua casa ou que aparecem a dançar, e que, onde quer que tu estejas vais ser assombrado por aquilo e vais acabar por ter tumores na cabeça. E depois, também veio esta ideia de que o cancro tem sido de facto a maldição da minha família e de muitas famílias hoje em dia”.
A linguagem cinematográfica encontra-se não apenas na história, nem na crítica implícita – “pergunto-me, será que a produção e os artistas alguma vez poderão encontrar-se?” -, mas também na materialização do espetáculo.
Ao longo de toda a peça há sempre uma personagem a filmar e as imagens, que não são necessariamente sobre o que se está a passar no palco, podendo ser cenas de bastidores, por exemplo, são projetas num ecrã.
“Eu gosto muito desta ideia desta circularidade de energia, esta ideia desta simultaneidade e de eu tomar uma decisão. E neste espetáculo, acho que o que poderá ser curioso é que o próprio público tem de tomar muitas decisões, não só porque às vezes há cenas em que está muita gente, mas é também tentar-se guiar, porque temos uma tela que nos está a mostrar um plano de sequência que nunca é cortado. Então, se calhar, quem estiver mais atento àquilo, tem pequenos segredos, que quem estiver só atento a isto não apanha”, explicou.
“Quando eu morrer vou fazer filmes no inferno” é um espetáculo intenso e sufocante, que concretiza intenção do encenador de impregnar o ambiente de terror e suspense, para passar ao espetador a sensação “de algo que existe, que está aqui e que não é totalmente detetável”.
Para Mário Coelho, este espetáculo tem algo das tragédias clássicas, de algo que vai acontecer a que não se pode fugir, mas também uma confluência com o terror, que é a sua “paixão” e é o género que o acompanha desde criança.
“E porque também gosto desta ideia do teatro aproximar-se do cinema e de ter um teatro de género, porque às vezes são géneros que não são tão feitos no teatro, ou são vistos como géneros menores”.
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